sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

O Sermão da Montanha (Mateus 5-7) por Dale C. Allison

O Sermão da Montanha é o primeiro dos cinco longos discursos de Jesus no Evangelho de Mateus. É um resumo em três capítulos da instrução moral de Jesus. Um dos seus principais assuntos é a Lei de Moisés (Mt 5.17-48). O discurso é controverso, pois parece afirmar, em oposição a Paulo e a maior parte da tradição cristã posterior, que os seguidores de Jesus ainda deveriam observar toda a Lei, o que certamente incluiria a circuncisão e os regulamentos dietéticos (Mt 5.17-20). Ao mesmo tempo, também parece dispensar várias partes da Lei (Mt 5.31-48). Será que a passagem se contradiz? Ou será que é consistente com a perspectiva do Evangelho de Mateus como um todo?

O Sermão da Montanha ensina que os cristãos ainda devem observar a Lei de Moisés?

Os seis parágrafos que abordam a lei lidam com a ira (Mt 5.21-26), a cobiça (Mt 5.27-30), o divórcio (Mt 5.31-32), juramentos (Mt 5.33-37), a vingança (5.38-42), e o amor (Mt 5.43-48). Muitos estudiosos bíblicos rotulam esses parágrafos de “antíteses”, porque na visão deles Jesus e Moisés se opõem. A Lei de Moisés permite o divórcio (Dt 24.1-4), juramentos (Lv 19.12; Nm 30.2-3; Dt 23.22) e a retaliação (Êx 21.24-25; Lv 24.20; Dt 19.21). Jesus, repetindo “mas eu digo a vocês”, proíbe todos eles. 

No entanto, ainda há problemas em supor que Jesus contradiz a Lei de Moisés. Mateus 5.17-20 diz explicitamente que Jesus não veio abolir a Lei e os Profetas. Pelo contrário, as pessoas deveriam obedecê-los e ensiná-los. Seria difícil deixar a questão mais clara. Parece até que Mateus 5.17-20 está precisamente onde está a fim de prevenir que leitores imaginem Jesus, nos parágrafos que se seguem, tendo a intenção de desconstruir os ensinamentos de Moisés. 

Mas como pode ser isso, se Jesus abole o divórcio e os juramentos, e proíbe a retaliação? O problema pode ser uma ilusão se pensarmos em termos de prática: aqueles que obedecem as palavras de Jesus não transgredirão nenhuma lei da Bíblia Hebraica. Moisés pode permitir o divórcio, mas não o ordena. Ele pode permitir que se façam juramentos, mas não os exige. E ele pode permitir a retaliação, mas não a requer. Portanto, erradicar o divórcio, os juramentos e a retaliação não viola o que a Lei de Moisés ordena.

Esse modo de olhar o texto é consistente com o modo como Mateus, comparado aos outros Evangelhos, trata algumas questões. Por exemplo, numa discussão de costumes dietéticos em Marcos 7.1-23, o evangelista Marcos comenta que Jesus declarou todos os alimentos puros (Mc 7.19). Mateus, em sua versão da mesma história, não diz nada que se compare a isso (Mt 15.1-20). Essa omissão faria sentido, se houvesse uma expectativa de que os leitores cristãos do Evangelho de Mateus ainda seguissem as leis dietéticas e outras leis judaicas. De forma semelhante, em Marcos 13.18, Jesus diz para os seus seguidores orarem para que a tribulação não venha sobre eles no inverno. No relato paralelo em Mt 24.20, Jesus diz que orem para não vir sobre eles “no inverno ou no sábado”. Essa versão expandida parece supor que a guarda do sábado ainda é importante para os leitores deste Evangelho.

Outro exemplo relevante é Mt 23.23, em que Jesus repreende os escribas e fariseus com estas palavras: “Hipócritas! Vocês dão o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas têm negligenciado os preceitos mais importantes da Lei, que são: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Vocês devem praticar estas coisas, sem omitir aquelas”. As palavras finais, “sem omitir aquelas”, parecem supor que a validade da Lei de Moisés continua para os seguidores de Jesus. Assim, parece natural pensar que o Evangelho de Mateus representa um tipo de cristianismo que observa a Lei, um cristianismo judaico que desejava preservar as antigas tradições com as novas (Mt 8.17; Mt 13.52).

O Sermão da Montanha contradiz Paulo intencionalmente?

Mateus 5.17 parece refutar um verdadeiro mal entendido. Isto é, Mateus conhece alguém que crê e ensina que Jesus veio para anular a Lei e os Profetas. Provavelmente o texto não seria tão firme em denunciar uma posição puramente hipotética, algo no qual ninguém cria. Mas quem é a pessoa ou o grupo contra quem Mateus reage? Quem ensinava que o tempo da Lei e dos Profetas chegou ao fim com a vinda de Jesus? É quase inevitável que uma resposta se insinua: Paulo. Ele ensinava que não era necessário aos cristãos observar a Lei de Moisés, e ele era, até onde sabemos, o proponente mais famoso dessa posição na igreja primitiva. Seria ele, então, o objeto do texto polêmico de Mateus? Mateus 5.17-20 certamente soa anti-paulino.

Muitos cristãos têm um entendimento da Escritura que rejeita a ideia de Mateus se opor a Paulo deliberadamente. Se, porém, pensarmos em termos históricos e não teológicos, é difícil descartar a possibilidade, ainda que ela não possa ser provada. Isso é ainda mais plausível porque Atos, Romanos e Gálatas mostram que a visão de Paulo sobre a lei era controversa – alguns cristãos judeus discordavam dele. Além disso, outra epístola do Novo Testamento, Tiago, ataca a perspectiva de que a fé sem obras pode salvar uma pessoa (Tg 2.14-26). Desde os tempos de Martinho Lutero, muitos têm argumentado de forma persuasiva que Tiago está se dirigindo a Paulo e seu evangelho livre da Lei. Pode ser o mesmo com o Evangelho de Mateus, que tem muitos outros pontos de contato interessantes com Tiago.

Dale C. Allison é professor de Novo Testamento em Princeton Theological Seminary. Ele é autor de muitos livros, incluindo The New Moses: A Matthean Typology (Fortress, 1993), Studies in Matthew (Baker Academic, 2005), and A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle of James (T&T Clark, 2013).


Tradução: Caio Peres