Relatar
discursos numa obra histórica antiga parece ser um empreendimento bastante
ousado, já que não há recursos modernos capazes de preservar cada palavra
usada. Por esse motivo, e por outros, alguns estudiosos questionam a
autenticidade dos discursos encontrados em Atos, assim como sua exatidão.[1]
No entanto, há diversas características na técnica de Lucas que demonstram uma
perspectiva diferente sobre a questão. Em primeiro lugar, Lucas não está
escrevendo uma história tão longe de seu próprio tempo,[2]
o que diminui um pouco as dificuldades para se relatar mais precisamente um
discurso. Em segundo lugar, outra característica de Lucas é que seus discursos,
mesmo os mais longos, são mais curtos do que os discursos relatados em outras
narrativas históricas antigas, diminuindo a possibilidade de criatividade na
composição, especialmente por Lucas usar poucas ferramentas retóricas nos
discursos que apresenta.[3]
Em terceiro lugar, ao comparar os discursos de Paulo, em Atos e em suas cartas,
Keener conclui que, em alguns momentos, Lucas apresenta Paulo como um orador
mais retórico do que realmente é; no entanto, em outros aspectos, as cartas de
Paulo apresentam mais técnicas retóricas do que Lucas pode oferecer no espaço
que dedica aos discursos, pois sua ênfase está na mensagem.[4]
Com essa última referência, agora,
podemos apresentar outra questão importante dos discursos em Atos: sua função
nas narrativas. A inserção de discursos em narrativas antigas é um uso
praticamente universal, pois historiadores antigos os consideravam parte
importante de seu trabalho.[5]
Lucas também os via como tendo grande importância para sua obra, não sendo
coincidência o fato de representarem mais de um terço dela.[6]
Seguindo técnicas de historiadores antigos, ele utiliza os discursos como
ferramenta interpretativa do material narrativo.[7]
No caso de Lucas, seus discursos enfatizam sua teologia da história como uma
história da redenção.[8]
Assim, os discursos que relata são chaves hermenêuticas importantes para o
entendimento de sua teologia e mensagem. Como os discursos mais significativos
em Atos, de acordo com a própria ênfase de Lucas, são os discursos
“evangelísticos”, o uso dos discursos serve para manter o foco na mensagem que
seus protagonistas estão proclamando por toda a narrativa.[9]
Considerando o propósito de Lucas em Atos – oferecer à igreja um modelo para
missões – os discursos funcionam apologeticamente para o modelo apresentado por
Lucas para sua audiência.[10]
Portanto, podemos concluir que os
discursos em Atos, apesar de não serem reproduções exatas das palavras
proferidas, também não são composições livres (invenções) de Lucas.[11]
Mesmo historiadores antigos, que apresentavam discursos com mais técnicas
retóricas do que Lucas, não se viam livres para criar algo que nunca existiu.
Muito menos Lucas, cuja tendência era diminuir os discursos mais do que
expandi-los.[12]
Ambos preservavam em seus discursos uma mensagem característica do orador, algo
que se esperaria que ele dissesse em determinada ocasião.[13]
Alguns exemplos de Lucas revelam isso, pois há uma preservação de conteúdo,
ainda que as palavras mudem levemente.[14]
No caso dos discursos de Paulo, especialmente aqueles onde a narrativa próxima
está na primeira pessoa do plural (atestando a presença de Lucas), a precisão
de Lucas nas palavras pode ser considerada elevada,[15]
pois além de ser testemunha, é possível que tivesse acesso a fontes, resumos do
discurso e relatórios de outras testemunhas.[16]
Ainda assim, não se pode impor sobre este discurso, nem sobre nenhum outro discurso
em Atos, o padrão moderno de autenticidade, ou seja, uma reprodução palavra por
palavra.
[1] Cf. a
discussão apresentada em Andreas J, Köstenberger, L. Scott Kellum, Charles L.
Quarles, The Cradle, the Cross and the
Crown: An introduction to the New Testament, p. 342.
[2] No máximo duas gerações depois (ca. 50
anos), mas, em muitos casos de Atos, esse espaço de tempo pode ter somente
alguns poucos anos.
[3]
Köstenberger, et. al., p. 344; Craig S. Keener, Acts: An Exegetical Commentary, vol. 1, pp. 258-259. Keener faz um excelente estudo comparativo
com outros historiadores antigos, tais como Tucíades e Plínio, e conclui que é
nos discursos que os historiadores mais demonstravam suas habilidades
retóricas, o que possibilitava maior liberdade criativa e menos precisão
histórica. Isso é o oposto do que acontece com Lucas, que se utiliza de
técnicas retóricas mais elaboradas em suas narrativas do que nos discursos.
[4] Keener, p. 267.
[5] Ibid., p. 258.
[6] Keener, p. 261. O autor apresenta diversas
estatísticas de outros autores. As variações dependem muito do que cada autor
considera como “discurso”. Alguns chegam a dizer que os discursos representam
75% da obra de Lucas.
[7] Ibid.,
265.
[8] Ibid.,
266.
[9] Ibid.,
259.
[10] Ibid.,
262.
[11] Köstenberger, et. al., p. 343.
[12] Keener, p. 283.
[13] Ibid., 271; Bruce W. Longenecker, Remember the Poor: Paul, Poverty and the
Greco-Roman World, p. 152, se referindo ao caso específico de Atos
20.18-35.
[14] E.g.,
compare Lc 24.47-49 com Atos 1.4-8; Atos 10.4-6 com 31-32; e 10.14 com 11.8.
[15] Colin
J. Hemer, “The Speeches of Acts: The Ephesian Elders at Miletus”, Tyndale Bulletin 40.1, 1989, p. 85. Este autor afirma que isso não é uma
negação da edição de Lucas ou de sua técnica de abreviação, mas que a parte do
orador e a parte da testemunha ocular, que preservou o discurso, estão tão
próximas que há pouco espaço para se tentar separar a contribuição de cada uma
delas.