sábado, 17 de outubro de 2015

Discursos em Atos dos Apóstolos por Caio Peres



Relatar discursos numa obra histórica antiga parece ser um empreendimento bastante ousado, já que não há recursos modernos capazes de preservar cada palavra usada. Por esse motivo, e por outros, alguns estudiosos questionam a autenticidade dos discursos encontrados em Atos, assim como sua exatidão.[1] No entanto, há diversas características na técnica de Lucas que demonstram uma perspectiva diferente sobre a questão. Em primeiro lugar, Lucas não está escrevendo uma história tão longe de seu próprio tempo,[2] o que diminui um pouco as dificuldades para se relatar mais precisamente um discurso. Em segundo lugar, outra característica de Lucas é que seus discursos, mesmo os mais longos, são mais curtos do que os discursos relatados em outras narrativas históricas antigas, diminuindo a possibilidade de criatividade na composição, especialmente por Lucas usar poucas ferramentas retóricas nos discursos que apresenta.[3] Em terceiro lugar, ao comparar os discursos de Paulo, em Atos e em suas cartas, Keener conclui que, em alguns momentos, Lucas apresenta Paulo como um orador mais retórico do que realmente é; no entanto, em outros aspectos, as cartas de Paulo apresentam mais técnicas retóricas do que Lucas pode oferecer no espaço que dedica aos discursos, pois sua ênfase está na mensagem.[4]

            Com essa última referência, agora, podemos apresentar outra questão importante dos discursos em Atos: sua função nas narrativas. A inserção de discursos em narrativas antigas é um uso praticamente universal, pois historiadores antigos os consideravam parte importante de seu trabalho.[5] Lucas também os via como tendo grande importância para sua obra, não sendo coincidência o fato de representarem mais de um terço dela.[6] Seguindo técnicas de historiadores antigos, ele utiliza os discursos como ferramenta interpretativa do material narrativo.[7] No caso de Lucas, seus discursos enfatizam sua teologia da história como uma história da redenção.[8] Assim, os discursos que relata são chaves hermenêuticas importantes para o entendimento de sua teologia e mensagem. Como os discursos mais significativos em Atos, de acordo com a própria ênfase de Lucas, são os discursos “evangelísticos”, o uso dos discursos serve para manter o foco na mensagem que seus protagonistas estão proclamando por toda a narrativa.[9] Considerando o propósito de Lucas em Atos – oferecer à igreja um modelo para missões – os discursos funcionam apologeticamente para o modelo apresentado por Lucas para sua audiência.[10]

            Portanto, podemos concluir que os discursos em Atos, apesar de não serem reproduções exatas das palavras proferidas, também não são composições livres (invenções) de Lucas.[11] Mesmo historiadores antigos, que apresentavam discursos com mais técnicas retóricas do que Lucas, não se viam livres para criar algo que nunca existiu. Muito menos Lucas, cuja tendência era diminuir os discursos mais do que expandi-los.[12] Ambos preservavam em seus discursos uma mensagem característica do orador, algo que se esperaria que ele dissesse em determinada ocasião.[13] Alguns exemplos de Lucas revelam isso, pois há uma preservação de conteúdo, ainda que as palavras mudem levemente.[14] No caso dos discursos de Paulo, especialmente aqueles onde a narrativa próxima está na primeira pessoa do plural (atestando a presença de Lucas), a precisão de Lucas nas palavras pode ser considerada elevada,[15] pois além de ser testemunha, é possível que tivesse acesso a fontes, resumos do discurso e relatórios de outras testemunhas.[16] Ainda assim, não se pode impor sobre este discurso, nem sobre nenhum outro discurso em Atos, o padrão moderno de autenticidade, ou seja, uma reprodução palavra por palavra.





[1] Cf. a discussão apresentada em Andreas J, Köstenberger, L. Scott Kellum, Charles L. Quarles, The Cradle, the Cross and the Crown: An introduction to the New Testament, p. 342.

[2] No máximo duas gerações depois (ca. 50 anos), mas, em muitos casos de Atos, esse espaço de tempo pode ter somente alguns poucos anos.

[3] Köstenberger, et. al., p. 344; Craig S. Keener, Acts: An Exegetical Commentary, vol. 1, pp. 258-259. Keener faz um excelente estudo comparativo com outros historiadores antigos, tais como Tucíades e Plínio, e conclui que é nos discursos que os historiadores mais demonstravam suas habilidades retóricas, o que possibilitava maior liberdade criativa e menos precisão histórica. Isso é o oposto do que acontece com Lucas, que se utiliza de técnicas retóricas mais elaboradas em suas narrativas do que nos discursos.

[4] Keener, p. 267.

[5] Ibid., p. 258.

[6] Keener, p. 261. O autor apresenta diversas estatísticas de outros autores. As variações dependem muito do que cada autor considera como “discurso”. Alguns chegam a dizer que os discursos representam 75% da obra de Lucas.

[7] Ibid., 265.

[8] Ibid., 266.

[9] Ibid., 259.

[10] Ibid., 262.

[11] Köstenberger, et. al., p. 343.

[12] Keener, p. 283.

[13] Ibid., 271; Bruce W. Longenecker, Remember the Poor: Paul, Poverty and the Greco-Roman World, p. 152, se referindo ao caso específico de Atos 20.18-35.

[14] E.g., compare Lc 24.47-49 com Atos 1.4-8; Atos 10.4-6 com 31-32; e 10.14 com 11.8.

[15] Colin J. Hemer, “The Speeches of Acts: The Ephesian Elders at Miletus”, Tyndale Bulletin 40.1, 1989, p. 85. Este autor afirma que isso não é uma negação da edição de Lucas ou de sua técnica de abreviação, mas que a parte do orador e a parte da testemunha ocular, que preservou o discurso, estão tão próximas que há pouco espaço para se tentar separar a contribuição de cada uma delas.


[16] Keener, p. 284.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Gênesis 1.26-28 e 2.15: O domínio humano como serviço por Caio Peres



No relato da criação em Gênesis há dois pontos em que o texto determina a identidade e a responsabilidade do ser humano. O primeiro é Gênesis 1.26-28 e o segundo é Gênesis 2.15. Em Gênesis 1.26, quando o texto afirma que a humanidade foi criada “à imagem e conforme a semelhança” de Deus, ele está estabelecendo a identidade da humanidade.[1] Apesar de as discussões etimológicas e teológicas a respeito dessa afirmação serem extensas e controversas,[2] há elementos que prevalecem. Em primeiro lugar, a ideia de “imagem” é usada a respeito de ídolos (Nm 33.52) e é linguagem comum em textos egípcios e assírios para descrever o rei como “imagem” da divindade.[3] Em segundo lugar, a ideia de “semelhança” significa “carregar semelhança”. Em terceiro lugar, o verbo que aparece em seguida, “domine” (heb. rādâ), carrega nuanças de domínio régio, pois se trata de uma atividade característica de governantes e reis.[4] Em quarto e último lugar, o contexto é o da presença divina sobre a criação como um que “descansa” num trono.

            Tudo isso aponta para a identidade humana como aquela que representa o reinado de Deus sobre a criação,[5] ou seja, o homem, carregando em si a imagem e semelhança (a identidade) de Deus, é um vice-regente, tendo a capacidade e a responsabilidade de ser e agir como o próprio Criador.[6]

            Já o texto de 2.15 apresenta Deus colocando o homem no jardim do Éden, para que este o “cultive” e “guarde”. Que tarefa seria essa de “cultivar” (heb. ‘ābad) e “guardar” (heb. shāmar)? O fato de o homem estar num jardim, certamente, implica que “cultivar” é exercer atividade agrícola. Assim, o homem tem uma responsabilidade de trabalhar no jardim, a fim de que este frutifique e se multiplique. Além disso, “guardar” implica em “cuidar”,[7] quase no sentido de “manter”, ou seja, o homem deve exercer uma atividade produtiva, mas sempre tendo o cuidado de manter o jardim em “ordem”. 

            Uma característica importante dessa atividade, porém, é que ela carrega um significado teológico de serviço. A palavra hebraica, traduzida em português como “cultivar”, tem o significado mais comum de “servir”. Isso faz da atividade humana de desenvolvimento da criação um serviço prestado à criação. E qual o sentido disso? A atividade criativa de Deus é o estabelecimento de uma ordem para que o cosmo gere e sustente a vida, sendo essa sua função. A atividade humana deve fazer com que a criação produza frutos e, assim, gere e sustente a vida. A atividade humana, portanto, “serve” à criação, fazendo com que ela cumpra sua função. 

            Há duas relações importantes que devem ser feitas entre Gênesis 1.26-28 e 2.15. A primeira é que a atividade tão mundana de Gênesis 2.15, estabelecida como a responsabilidade do ser humano, é o modo de este exercer sua identidade como “imagem e semelhança” de Deus, como vice-regente.[8] Portanto, ao “cultivar” e “guardar” o jardim, o homem também presta um serviço a Deus. É nessa tarefa mundana que o homem cultua a Deus.[9] A segunda é que o “domínio” da humanidade sobre a criação é um “domínio de serviço”. Não se trata do domínio característico do poder exercido pelos grandes reis e imperadores, mas do domínio característico do poder exercido pelo Criador, que é “rei” da criação. Portanto, o verdadeiro domínio que é característico da identidade humana como “imagem e semelhança de Deus” é aquele que se manifesta numa atividade de serviço.[10]


[1] Cf. Victor P. Hamilton, The Book of Genesis: Chapters 1-17 (New International Commentary), p. 137. O autor diz que o texto não tem interesse em definir o que é a imagem de Deus no homem, mas simplesmente estabelece o fato… ser humano é carregar a imagem de Deus.
[2] Ver Gordon J. Wenham, Word Biblical Commentary : Genesis 1-15, p. 28-30.
[3] Gordon J. Wenham, Word Biblical Commentary : Genesis 1-15, p. 29. John Walton fala da prática dos reis da Mesopotâmia de colocar suas próprias “imagens” (certamente em forma de um “ídolo”) nos locais onde haviam estabelecido sua autoridade. John H. Walton, Genesis (New International Version Application Commentary), p. 130.
[4] Cf. Victor P. Hamilton, The Book of Genesis: Chapters 1-17 (New International Commentary), p. 138; Gordon J. Wenham, Word Biblical Commentary : Genesis 1-15, p. 28 (p. ex., em 1Rs 4.24, o verbo é traduzido como “governava”).
[5] Cf. G. K. Beale, The Temple and the Church’s Mission, 82. Afirmando, assim como Wenham e Walton, a prática de reis antigos, Beale fala sobre o importante aspecto das imagens como representantes da presença soberana do rei.
[6] Cf. John H. Walton, Genesis (New International Version Application Commentary), p. 131.
[7] Cf. Victor Hamilton, The Book of Genesis: Chapters 1-17 (New International Commentary), p. 171, que fala sobre “exercer grande cuidado sobre”.
[8] Cf. G. K. Beale, The Temple and the Church’s Mission, 84.
[9] O termo “cultivar”, em seu sentido de “servir”, é usado a respeito do “serviço” prestado a Deus em Deuteronômio 4.19, e especialmente sobre a atividade levítica no tabernáculo (Nm 3.7-8; 4.23-24,26). O mesmo acontece com o termo “guardar”, a respeito da responsabilidade levítica de proteger o tabernáculo de intrusos que pudessem ameaçar sua pureza (Nm 1.53; 3.7-8; Lv 18.5).
[10] Cf. Samuel E. Balentine, The Torah’s Vision of Worship, p. 49.

Hospitalidade no Novo Testamento por Carolyn Osiek



O ambiente em torno de Jerusalém é austero e implacável: ao oeste, montanhas rochosas com pouca água e, ao leste, um deserto inacessível, com temperaturas abrasadoras na maior parte do ano. Viajar poderia ser perigoso, por isso, a hospitalidade ao viajante era uma necessidade permanente e um esforço sagrado. O Novo Testamento está cheio de imagens e histórias de recepção de hóspedes, tanto de conhecidos amigos, como de estranhos, acolhidos e transformados em hóspedes. Entre tribos nômades, o hóspede está sob a proteção do anfitrião, aquele que garante segurança completa. Os elementos importantes da hospitalidade incluem a oportunidade de oferecer óleos aromatizantes para suavizar a pele e disfarçar os odores, lavagem dos pés sujos, comida, abrigo, segurança e companhia.

            Quando Jesus envia discípulos à missão, eles devem se hospedar nas casas em que são bem-vindos. A visão que Jesus tem de missão é impossível sem essa reciprocidade, a recepção daqueles que são enviados (Mt 10.11; Mc 6.10; Lc 9.4; Lc 10.7-8). Em caso de recusa da hospitalidade, os discípulos devem seguir adiante.

            As muitas histórias de banquetes nos Evangelhos pressupõem a prática da hospitalidade para eventos importantes e momentos de transição: por exemplo, o grande banquete (Mt 22.1-10; Lc 14.15-24) ou a celebração da volta do filho mais novo (Lc 15.22-32). Na perspectiva bíblica, esses banquetes abrem o horizonte em direção ao reino do céu. Como a felicidade plena é imaginada – como um banquete em que todos estão felizes e fartos (Lc 22.30), ou como a celebração de um casamento (Ap 19.9)?

            Jesus mesmo é o importante hóspede nos Evangelhos. Há um modo errado de recebê-lo, tipificado por Simão, o fariseu, que o trata com descuido, sem oferecer água para a lavagem de seus pés, nem óleo para ungi-lo ou um gesto de bem-vindo, enquanto a mulher “pecadora”, que entra sem ser convidada, o recebe corretamente (Lc 7.36-50). Marta e Maria não oferecem a recepção perfeita, já que nesse ambiente íntimo entre amigos, em que se deveria sentir o conforto familiar, Jesus é levado a um lar onde há, por baixo da superfície, uma tensão familiar.

            Posteriormente, Paulo e outros missionários itinerantes dependem da hospitalidade daqueles que os recebem, enquanto viajam de cidade em cidade. A Ceia do Senhor era celebrada, prioritariamente, ainda que não exclusivamente, em lares que se tornariam centros de hospitalidade e evangelização. Em Filipos, Lídia, uma comerciante de tecido de púrpura, é convencida pela pregação de Paulo e insiste que ele aceite a hospitalidade da sua casa, que se tornará um centro de fé (At 16.14-15, 40). Na miraculosa libertação noturna de Paulo e Silas da prisão em Filipos, o carcereiro, ele mesmo salvo do suicídio pela ação rápida de Paulo, responde levando-os a sua própria casa, onde ele e sua família prestam socorro médico e lhes dão alimento no meio da noite (At 16.29-34). Aqui, hospitalidade é a expressão de um desejo de consertar os danos do passado e dar continuidade ao relacionamento.

            Os ouvintes da Carta aos Hebreus são alertados sobre a importância da hospitalidade: alguns, dessa forma, acolherem anjos sem o saber (Hb 13.2; compare com Gn 18.1-15). Mas nem sempre as coisas dão certo. O autor de 3João 9 tem um problema de hospitalidade: a casa de Diótrefes não recebe os emissários enviados pelo autor – não sabemos o por quê.

            Até o fim da Bíblia a hospitalidade é um assunto importante: pede-se que Laodiceia, uma das sete cidades mencionadas em Apocalipse, receba o Jesus ressurreto como hóspede que vem para o jantar (Ap 3.20). Eles o receberiam? 


Carolyn Osiek é professora de Novo Testamento em Brite Divinity School. Autora e editora de doze livros e muitos artigos. Anteriormente, presidente da Society of Biblical Literature.

Texto original: "Hospitality in the New Testament": http://www.bibleodyssey.org/passages/related-articles/hospitality-in-the-new-testament.aspx

Tradução: Caio Peres