quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Gênesis 1.26-28 e 2.15: O domínio humano como serviço por Caio Peres



No relato da criação em Gênesis há dois pontos em que o texto determina a identidade e a responsabilidade do ser humano. O primeiro é Gênesis 1.26-28 e o segundo é Gênesis 2.15. Em Gênesis 1.26, quando o texto afirma que a humanidade foi criada “à imagem e conforme a semelhança” de Deus, ele está estabelecendo a identidade da humanidade.[1] Apesar de as discussões etimológicas e teológicas a respeito dessa afirmação serem extensas e controversas,[2] há elementos que prevalecem. Em primeiro lugar, a ideia de “imagem” é usada a respeito de ídolos (Nm 33.52) e é linguagem comum em textos egípcios e assírios para descrever o rei como “imagem” da divindade.[3] Em segundo lugar, a ideia de “semelhança” significa “carregar semelhança”. Em terceiro lugar, o verbo que aparece em seguida, “domine” (heb. rādâ), carrega nuanças de domínio régio, pois se trata de uma atividade característica de governantes e reis.[4] Em quarto e último lugar, o contexto é o da presença divina sobre a criação como um que “descansa” num trono.

            Tudo isso aponta para a identidade humana como aquela que representa o reinado de Deus sobre a criação,[5] ou seja, o homem, carregando em si a imagem e semelhança (a identidade) de Deus, é um vice-regente, tendo a capacidade e a responsabilidade de ser e agir como o próprio Criador.[6]

            Já o texto de 2.15 apresenta Deus colocando o homem no jardim do Éden, para que este o “cultive” e “guarde”. Que tarefa seria essa de “cultivar” (heb. ‘ābad) e “guardar” (heb. shāmar)? O fato de o homem estar num jardim, certamente, implica que “cultivar” é exercer atividade agrícola. Assim, o homem tem uma responsabilidade de trabalhar no jardim, a fim de que este frutifique e se multiplique. Além disso, “guardar” implica em “cuidar”,[7] quase no sentido de “manter”, ou seja, o homem deve exercer uma atividade produtiva, mas sempre tendo o cuidado de manter o jardim em “ordem”. 

            Uma característica importante dessa atividade, porém, é que ela carrega um significado teológico de serviço. A palavra hebraica, traduzida em português como “cultivar”, tem o significado mais comum de “servir”. Isso faz da atividade humana de desenvolvimento da criação um serviço prestado à criação. E qual o sentido disso? A atividade criativa de Deus é o estabelecimento de uma ordem para que o cosmo gere e sustente a vida, sendo essa sua função. A atividade humana deve fazer com que a criação produza frutos e, assim, gere e sustente a vida. A atividade humana, portanto, “serve” à criação, fazendo com que ela cumpra sua função. 

            Há duas relações importantes que devem ser feitas entre Gênesis 1.26-28 e 2.15. A primeira é que a atividade tão mundana de Gênesis 2.15, estabelecida como a responsabilidade do ser humano, é o modo de este exercer sua identidade como “imagem e semelhança” de Deus, como vice-regente.[8] Portanto, ao “cultivar” e “guardar” o jardim, o homem também presta um serviço a Deus. É nessa tarefa mundana que o homem cultua a Deus.[9] A segunda é que o “domínio” da humanidade sobre a criação é um “domínio de serviço”. Não se trata do domínio característico do poder exercido pelos grandes reis e imperadores, mas do domínio característico do poder exercido pelo Criador, que é “rei” da criação. Portanto, o verdadeiro domínio que é característico da identidade humana como “imagem e semelhança de Deus” é aquele que se manifesta numa atividade de serviço.[10]


[1] Cf. Victor P. Hamilton, The Book of Genesis: Chapters 1-17 (New International Commentary), p. 137. O autor diz que o texto não tem interesse em definir o que é a imagem de Deus no homem, mas simplesmente estabelece o fato… ser humano é carregar a imagem de Deus.
[2] Ver Gordon J. Wenham, Word Biblical Commentary : Genesis 1-15, p. 28-30.
[3] Gordon J. Wenham, Word Biblical Commentary : Genesis 1-15, p. 29. John Walton fala da prática dos reis da Mesopotâmia de colocar suas próprias “imagens” (certamente em forma de um “ídolo”) nos locais onde haviam estabelecido sua autoridade. John H. Walton, Genesis (New International Version Application Commentary), p. 130.
[4] Cf. Victor P. Hamilton, The Book of Genesis: Chapters 1-17 (New International Commentary), p. 138; Gordon J. Wenham, Word Biblical Commentary : Genesis 1-15, p. 28 (p. ex., em 1Rs 4.24, o verbo é traduzido como “governava”).
[5] Cf. G. K. Beale, The Temple and the Church’s Mission, 82. Afirmando, assim como Wenham e Walton, a prática de reis antigos, Beale fala sobre o importante aspecto das imagens como representantes da presença soberana do rei.
[6] Cf. John H. Walton, Genesis (New International Version Application Commentary), p. 131.
[7] Cf. Victor Hamilton, The Book of Genesis: Chapters 1-17 (New International Commentary), p. 171, que fala sobre “exercer grande cuidado sobre”.
[8] Cf. G. K. Beale, The Temple and the Church’s Mission, 84.
[9] O termo “cultivar”, em seu sentido de “servir”, é usado a respeito do “serviço” prestado a Deus em Deuteronômio 4.19, e especialmente sobre a atividade levítica no tabernáculo (Nm 3.7-8; 4.23-24,26). O mesmo acontece com o termo “guardar”, a respeito da responsabilidade levítica de proteger o tabernáculo de intrusos que pudessem ameaçar sua pureza (Nm 1.53; 3.7-8; Lv 18.5).
[10] Cf. Samuel E. Balentine, The Torah’s Vision of Worship, p. 49.

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