A resposta
para a pergunta feita no fim do último post é negativa. É claro que essas
profecias político-militares cumprem outra função em seu contexto literário
maior.[1] No caso
de Obadias, esse contexto literário maior é o Livro dos Doze.[2]
Quando lemos cada livro dos profetas menores em relação aos outros livros, alguns
dos aspectos mais específicos acabam tomando um sentido mais abrangente, mais
generalizado. Parece que o interesse dos responsáveis por preservar a
literatura profética não estava na mensagem dos profetas neste ou naquele
período, mas na relação desses profetas e suas mensagens, a fim transmitir um
sentido para as ações de Yahweh na
história mais ampla.[3]
Quando se lê, por exemplo, o primeiro Livro dos Doze como uma introdução aos
Doze, a especificidade do problema apresentado em Oseias, isto é, a ruptura no
relacionamento entre Yahweh e Israel,
e o chamado do livro, isto é, a reconciliação entre Yahweh e Israel, se torna um tema abrangente pelo qual se entende
todos os outros livros,[4]
portanto, acaba incluindo também a relação de Yahweh com todas as nações, já que esse é o tema dos próximos
livros (Joel, Amós – ainda que seja o tema somente do primeiro capítulo –
Obadias, Jonas e Naum).[5]
Nessa visão mais ampla e abrangente,
o que acontece é que o julgamento de Deus, sobre esta ou aquela nação, se torna
um tema programático nos Doze para falar sobre o julgamento de Deus sobre todos
os que se opõe a ele.[6]
Isso fica evidente em Joel, que se recusa a especificar quem é o “inimigo”.
Dessa forma, Joel se torna, assim como Oseias, uma introdução sobre o tema do
“dia de Yahweh” contra qualquer
“inimigo”.[7]
No caso de Obadias, especificamente, o julgamento de Edom é representativo do
julgamento de todas as nações,[8]
ou, mais abrangente ainda, todo o mundo pagão.[9]
Um indício de que Obadias pode e deve ser lido dessa maneira é a falta de
referência cronológica no livro, assim como no caso de Joel. Os dois livros sem
data emolduram um livro datado, Amós.[10]
Visto em relação com Amós, Obadias serve como um tipo de comentário sobre Amós
9.12,[11]
em que Edom é mencionado dentro de um contexto muito interessante. O fim de
Amós fala que os pecadores de Israel morrerão (9.10), o reino será restaurado
(9.11), “para que tomem posse”[12]
do “restante” de Edom e de todas as nações que “chamam pelo meu nome” (9.12).
Diferente de Obadias, Amós não está carregado de tom vingativo e militar. Na
verdade, está falando sobre a preservação de um ambiente seguro e próspero para
um povo restaurado (9.13-15). Além
disso, incluir Edom e outras nações como quem é “chamado pelo nome do SENHOR”,
é um detalhe importante como veremos logo. O que se percebe, neste contexto, é
que a questão de Edom tem a ver com algo muito maior e mais importante do que
se olhássemos para Obadias de forma isolada.[13]
Uma pergunta importante que é feita
e respondida no Livro dos Doze é quem será salvo no Dia do SENHOR. Joel, que é
o profeta que faz essa pergunta de forma explícita (2.32), também dá uma
resposta explícita. Será salvo todo aquele que “chama pelo nome do SENHOR”
(2.32). É interessante que o Livro dos Doze dá indícios do que isso significa.
O próprio Joel convoca um jejum de arrependimento e humilhação (2.13-14) e que
se faça um clamor (2.14), que será invocado assim: “Ó SENHOR poupa o teu povo”
(2.17). Mas é Jonas quem torna esse chamado de Joel numa descrição do que
Nínive fez de fato.[14]
Em Jonas, toda a cidade de Nínive faz um jejum de humilhação e arrependimento
como decreto do rei (Jonas 3.5-8).
Tal comportamento expressa um tipo
de reconhecimento de que o julgamento é justo, mas apela para que Deus utilize
de sua misericórdia a fim de alcançar a justiça que deseja. O termo
misericórdia é apropriado, pois mesmo depois de humilhação e arrependimento, o
que garante a justiça divina é a misericórdia de Deus. Por isso, por exemplo,
Joel e Jonas utilizam a expressão “quem sabe Deus mude de ideia” (Joel 2.14 e
Jonas 3.9).[15]
Por mais que essa mudança de ideia da parte de Deus aconteça e ele não envie
mais sua ira (cf. Jonas 3.9), mesmo como resposta ao arrependimento das
pessoas,[16]
o fundamento para que a ira não seja derramada e todos morram é a misericórdia
e compaixão do SENHOR, que é paciente e cheio de amor, e arrepende-se do mal
que planejava enviar (Joel 2.13; Jonas 4.2).
Uma tensão que existe no Livro dos
Doze é se isso vale somente para o povo de Deus, Israel/ Judá, ou também para
as outras nações. Em alguns momentos, parece que os profetas somente clamam
pela misericórdia de Deus para que Israel seja poupado,[17]
mas quando se trata das outras nações o clamor é por “justiça”. Aí, mais uma
vez entra a importância de Jonas e de Joel 2.32. O livro de Jonas deixa claro
que a misericórdia de Deus vai ao encontro do arrependimento de qualquer um,[18]
ainda que seja a nação mais ímpia. E Joel 2.32 diz que “todas as pessoas” que
chamarem pelo nome do SENHOR podem ser salvas. Nessa questão é importante
contrapor Jonas a Naum. Em Jonas, Nínive é poupada pela misericórdia de Deus,
por causa de seu arrependimento. Em Naum, dois livros depois de Jonas, Nínive é
ameaçada de destruição. Jonas é uma obra literária que apresenta uma
possibilidade de arrependimento e salvação de Nínive, mas a Nínive real jamais
demonstrou tal arrependimento. A salvação depende do arrependimento, daí a
necessidade de Naum contrapor a mensagem esperançosa de Jonas com uma mensagem
mais “realista”, pois apesar de Deus demorar para se irar (Na 1.3), ele não
inocenta o culpado. E muitos em Nínive eram culpados, pois “quem não tem
sofrido por causa da sua maldade?” (Na 3.19).[19]
Assim, estamos chegando a um entendimento que diferencia inocentes e culpados por
seu comportamento diante da “justiça” de Deus.
Obadias é emoldurado por Joel e
Amós, que o precedem, e Jonas, que o procede. Como vimos, Obadias torna Edom
num representante de todas as nações. Essa generalização também acontece em
Jonas, que pode estar querendo usar a Assíria/ Nínive como representante de
todas as outras nações. Dessa forma, a extensão da misericórdia de Deus para
“todas as nações” em Jonas, pode ser, também, estendida para “todas as nações”
de Obadias.[20]
Outra associação importante é sobre a expressão “quem chama pelo nome do
SENHOR”. Como foi apresentado acima, a expressão aparece em Joel 2.32 fazendo
uma referência à possibilidade de “todas as pessoas” serem salvas. Uma
expressão semelhante aparece em Amós 9.12, que fala de “todas as nações
chamadas pelo meu [do SENHOR] nome”. O contexto de Amós é justamente sobre o
destino de Edom. A expressão se repete em Jonas 3.8, e é seguida pela
expressão, “quem sabe Deus mude de ideia” (Jonas 3.9).[21]
Diante dessas associações, pode ser que Obadias, entre Amós e Jonas, no fim,
sirva para que façamos a pergunta: e se Edom se arrepender? E a resposta que
recebemos seria: então pode ser que Deus mude de ideia, basta que “chamem pelo
nome do SENHOR” (Joel 2.32). Mais importante ainda é que Amós afirma que um dia
Edom e todas as nações “serão chamadas pelo nome do SENHOR”.[22]
Como o contexto de Amós é de um futuro mais abrangente, parece que este é o
futuro de Edom, e não aquele visado por Obadias.
É interessante que tudo isso pode
acontecer, ainda que as profecias de destruição e julgamento já tenham sido
anunciadas. Mesmo depois das ameaças de Joel 1 e 2, existe o chamado: “Mesmo
agora, convertam-se…” (2.12). Mesmo depois da ameaça de julgamento, ainda há
tempo.[23]
As profecias de julgamento, portanto, como aprendemos muito bem em Jonas, têm
um objetivo: não serem cumpridas. Nas palavras de Abraham Heschel, a
proclamação da ira é um chamado para o cancelamento da ira.[24]
Mesmo Obadias pode ser interpretado como uma proclamação da ira de Deus sobre
Edom, a fim de que a ira de Deus sobre Edom seja cancelada. E, como aparece na
mensagem de esperança escatológica de Amós 9, Edom será salva e fará parte de
um povo restaurado que “chama pelo nome do SENHOR”.
[1] Marvin Sweeney, “Sequence and
Interpretation in the Book of the Twelve”, in Reading and Hearing the Book of the Twelve, p. 56.
[2] Questiona-se
essa opção interpretativa pelo fato de não depender da “intenção do autor”,
tomando como um fato que o texto que temos em mãos tenha sido escrito pelo
próprio profeta Obadias ou algo do tipo. Tal crítica não leva em consideração
que o que temos diante de nós não é um profeta e sua fala, mas uma peça
literária que preserva a mensagem do profeta dentro de um contexto literário
maior.
[3] Christopher R. Seitz, Prophecy
and Hermeneutics, p. 196.
[4] Idem.
[5] A versão grega
do Antigo Testamento (LXX) traz a sequência, Joel, Obadias, Jonas e Naum, quatro
livros cujo tema principal é as nações. Cf. Marvin Sweeney, “Sequence and Interpretation in the Book of the
Twelve”, in Reading and Hearing the Book
of the Twelve, p. 57.
[6] Christopher R. Seitz, Prophecy
and Hermeneutics, p. 139.
[7] Marvin Sweeney, “Sequence and Interpretation in the Book of the
Twelve”, in Reading and Hearing the Book
of the Twelve, p. 58; Marvin Sweeney, Tanak,
p. 343-4.
[8] Cf. Brevard S. Childs, Introduction
to the Old Testament as Scripture, p. 414; Gordon McConville, A Guide to the Prophets, p. 181.
[9] Christopher R. Seitz, Prophecy
and Hermeneutics, p. 138.
[10] Cf. Rolf Rendtorff, “How to Read the Book of the
Twelve as a Theological Unity”, in Reading
and Hearing the Book of the Twelve, p. 77.
[11] Leslie Allen, The Books of Joel,
Obadiah, Jonah and Micah (NICOT),
p. 129.
[12] O original em
hebraico não define quem é o sujeito do verbo “tomar posse”.
[13] Christopher R. Seitz, Prophecy
and Hermeneutics, p. 138-9.
[14] Cf. Christopher R. Seitz, Prophecy
and Hermeutics, p. 185.
[15] As expressões
são levemente diferentes, mas são semelhantes o suficiente para que a
associação seja feita. Cf. Rolf Rendtorff,
“How to Read the Book of the Twelve as a Theological Unity”, in Reading and Hearing the Book of the Twelve,
p. 82.
[16] Que a mudança
no comportamento de Deus é uma resposta à mudança do comportamento das pessoas
fica claro pelo uso do verbo “voltar/ converter” (heb. shuv), em Joel 2.12 e 14. No v. 12, Deus pede para que o povo “se
converta” (heb. shuv), a fim de que,
no v. 14, Deus “volte atrás” (heb. shuv)
e mude de ideia sobre o julgamento.
[17] Por exemplo,
Is 54.8 e mesmo o que é dito em Joel 2.12-17.
[18] Cf. Marvin Sweeney, Tanak, p.
355.
[19] Jonas termina
com uma pergunta sobre a necessidade de Deus ter compaixão de muitos inocentes
em Nínive, enquanto Naum termina com uma pergunta sobre muitas pessoas sofrerem
por causa da maldade de muitos ninivitas. Cf. Christopher R. Seitz, Prophecy
and Hermeutics, p. 148.
[20] Cf. Marvin Sweeney – “Sequence and
Interpretation in the Book of the Twelve”, in Reading and Hearing the Book of the Twelve, p. 58.
[21] No hebraico a
expressão não é idêntica nas três ocorrências. Joel 2.32 e Amós 9.12 são muito
semelhantes, somente diferindo na conjugação do verbo “chamar” (heb. qara’), que em Joel está na forma do qal, e em Amós está na forma do nifal.
[22] Como os
comentaristas não fazem essa associação, eles tendem a ver na expressão
encontrada em Amós 9.12 uma afirmação de que um dia o SENHOR terá “domínio
soberano” sobre Edom e as outras nações (p. ex. David A. Hubbard, Joel e Amós, Introdução e Comentário, p.
82 e Jörg Jeremias, The Book of Amos (OTL), p. 167. É importante notar que o
contexto de Amós 9 é de uma promessa de restauração completa da criação e do
“povo de Deus”. Diferente de Obadias, não há um contexto militar e de
“controle” sobre porções de terra. Ainda que haja menção da “dinastia de Davi”,
a ideia está mais para a ideia de um rei justo, que estabelecerá a justiça, cf.
Salmos 72.
[23] Cf. Rolf Rendtorff, “How to Read the Book of the Twelve as a
Theological Unity”, in Reading and
Hearing the Book of the Twelve, p. 78.
[24] Abraham Heschel, The Prophets,
p. 367.