Os livros proféticos que aparecem no Antigo Testamento são o resultado de uma complexa produção literária, envolvendo tradições proféticas orais, textuais e edições posteriores. Por isso, sua leitura correta depende de uma análise histórica, até onde isso for possível, e análises literárias. No caso dos “grandes” livros proféticos, Isaías, Jeremias e Ezequiel, essa análise literária deve levar em consideração todo o corpo da obra, já no caso dos “pequenos” livros proféticos, a análise literária deve levar em consideração o corpo da obra literária ao qual pertencem, a saber, o Livro dos Doze.[1] Assim, esse pequeno estudo será dividido em dois posts: (1) a análise histórica e (2) a análise literária de Obadias.
Nesta análise histórica, devemos
começar apontando para questões de pano de fundo histórico que podem estar
relacionadas com as evidências apresentadas pelo texto de Obadias. Os vv. 10-14
descrevem um pouco da atitude de Edom, introduzindo-as como “violência” (v.
10). O v. 11 diz que Edom agiu como se estivesse “do lado” dos inimigos de
Judá. Isso por que Edom viu na calamidade da destruição de Judá uma
oportunidade de se apoderar das posses dele (v. 13). Para piorar as coisas,
Edom ainda aproveitou a oportunidade para matar e entregar fugitivos indefesos
(v. 14). Obadias ainda diz que Edom se alegrou e brincou com toda essa desgraça
que atingiu Judá. Apesar de existirem vários episódios de desavenças e disputas
militares entre Israel/ Judá e Edom,[2] é muito
provável que Obadias esteja apontando para a atitude de Edom no caso da
destruição de Jerusalém pelos Babilônios, em 587 a.C.[3]
Apesar de tal fato poder ser a
explicação da origem das profecias que aparecem em Obadias, um fator curioso
pode nos levar a outra direção. Muitos comentaristas indicam paralelos, em
alguns casos uma relação exata, entre Obadias 1b-5 e Jeremias 49.9-16.[4] Só como
exemplo, cito Obadias 1b: “foi enviado um mensageiro por entre as nações para
dizer: 'Levantai-vos!
Levantemos para lutar contra Edom!'”, com seu paralelo em Jeremias 49.14 (“Um
embaixador é enviado por entre as nações para lhes dizer: Ajuntai-vos e vinde
contra ela; levantai-vos para a guerra”).[5] É claro
que não se trata de uma coincidência. Quando algo assim acontece, os estudiosos
tentam verificar qual texto é prioritário e qual é secundário. O consenso dos
estudiosos, porém, caminhou em outra direção. No material paralelo entre
Jeremias e Obadias, não há menção da destruição de Judá e muito menos de
Jerusalém. Assim, essa deve ser uma tradição mais antiga que ambos os profetas,
proveniente do longo histórico de inimizade entre Edom e Israel/ Judá.[6] Assim,
ambos os profetas fizeram uso de uma tradição mais antiga a qual eles tinham
acesso.[7]
É difícil ter certeza de que forma essa
tradição foi preservada anteriormente aos livros de Jeremias e Obadias, mas há
uma grande probabilidade de que se trate de uma tradição de profecia cúltica.
Há diversas evidências históricas da relação entre profecia cúltica e ações
militares. Um exemplo interessante aparece em Jeremias 28. O rei Zedequias está
reunido com profetas, sacerdotes e outras pessoas, no templo de Jerusalém, onde
o profeta Jeremias profetiza, tendo um jugo no pescoço para simbolizar o jugo
da Babilônia sobre Judá. Então, o profeta Hananias quebra o jugo que Jeremias
trazia no pescoço e profetiza que esse é o destino do jugo da Babilônia (Jr
28.1-11). Outro exemplo é 1Reis 22.10-11/ 2Crônicas 18.9-10, em que um profeta,
dentre outros quatrocentos, diante do rei Acabe de Israel e do rei Josafá de
Judá, profetiza o “aniquilamento” dos sírios num ato simbólico em que levava
uns chifres de ferro na cabeça (possivelmente andando de lá para cá como um
touro). Esses relatos narrativos são corroborados pelo que aparece em Salmos
60.9-9, um cântico a ser usado de forma cúltica, em que há profecias contra
Moabe, Edom e Filístia, usando uma linguagem que remonta a atos proféticos
simbólicos.[8]
É importante que nos três casos
citados, o contexto de profecia cúltica diz respeito a ações militares. No caso
das narrativas, além do contexto militar, ainda há uma associação da profecia
com as estratégias políticas dos reis. Portanto, tal tradição profética
cúltica, historicamente, é um meio de levar adiante uma ideologia
político-militar do Reino de Deus, que é igualado ao reino de Israel/ Judá.
A profecia de Obadias, analisada
historicamente, está em conformidade com essa tradição político-militar.
Obadias constrói sua profecia a partir de um núcleo mais antigo de oráculos de
julgamento contra Edom. Obadias deixa bem claro o que ele entende ser o
resultado “justo” da ira divina contra Edom: Judá terá o controle do território
que antes pertencia a Edom (vv. 19-20). Nos vv. 17-20, o conceito de “tomar
posse” e “desapossar” é usado sete vezes. Por fim, Obadias afirma que o reino
será do SENHOR, quando Judá retomar o domínio sobre o território de Edom ou,
poeticamente, quando o monte Sião governar a montanha de Esaú (v. 21).
Com tais evidências, é difícil, a
partir de uma análise histórica, desvincular Obadias de uma tradição profética
que promovia ideias políticas e militares do reino de Israel/ Judá. Por isso o
seu teor é carregado de conceitos vingativos, considerando a ação militar de
Israel/ Judá contra Edom como ação de julgamento divino.[9] Tais
evidências também colocam uma grande interrogação sobre essa tradição. Nos
exemplos citados de Jeremias e 1Reis/ 2Crônicas, os profetas cúlticos, que agem
em favor de uma agenda político-militar são considerados “falsos profetas”.
Como, então, tal tradição acabou nos escritos canônicos da profecia “verdadeira”
de Israel?[10]
No caso de Obadias, como um “livro” inteiro moldado por essa “falsa profecia”
encontrou espaço no Livro dos Doze? Mais importante ainda, será que tais
profecias cumprem a mesma função na literatura profética canônica que tinham em
seu contexto político-militar? Responderei a isso no próximo post.
[1]
A ordem desses livros nas versões em português é a seguinte: Oseias, Joel,
Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias,
Malaquias.
[2]
A relação entre Israel e Edom é muito semelhante a uma disputa entre “irmãos”,
em que não se sabe quem “começou a briga”. Nas narrativas patriarcais a causa
das disputas é a artimanha de Jacó para receber a herança que pertencia a Esaú
(Gn 27). Nas narrativas do êxodo, Edom impede que Israel chegue à terra
prometida (Nm 20.14-21). Já na história dos reinos, Israel, sob a liderança de
Davi, matou dezoito mil edomitas (2Sm 8.13) e tornou Edom um vassalo, até a sua
revolta no reinado do rei Jeorão, quando Edom se tornou independente (2Rs
8.20-22).
[3] Brevard S. Childs, Introduction to the Old Testament as
Scripture, 412. Arqueologicamente, há evidências de que a destruição
no sul de Judá foi muito maior do que no norte, e que depois da destruição de
Judá, em 587 a.C., os territórios do sul, como o Neguebe e a Sefelá (regiões
citadas em Obadias 19), foram povoados por edomitas. Ver Joseph Blenkinsopp, A History of Prophecy in Israel, p. 150; Donald E. Gowan, Theology of the Prophetic Books, p. 118;
Jörg Jeremias, The Book of Amos (Old Testament Library), p. 30.
[4] Cf. Donald E. Gowan, Theology of the Prophetic Books, p. 119;
Gordon McConville, A Guide to the
Prophets (Exploring the Old Testament),
p. 180.
[5]
Utilizo a versão Almeida21 neste post.
[6]
Amós 1.11 e Ezequiel 35.5 caracterizam essa inimizade como algo “guardado para
sempre”. Sobre tal tradição ser anterior ao século VI a.C., ver Joseph
Blenkinsopp, A History of Prophecy in
Israel, p. 150.
[7] Hans Walter Wolff, “Obadja – ein
Kultprophet als Interpret”, citado em Brevard S. Childs, Introduction to the Old Testament as Scripture, 412.
[9]
Perceba que o v. 15 diz que o “dia do SENHOR” está perto e a maldade de Edom
contra Judá se voltará contra ele. Mas, no v. 18, esse efeito “boomerang” da
maldade é efetuado pelas mãos e armas de Israel/ Judá. E o resultado de tal ação
será o extermínio de Edom e não somente o julgamento dos culpados. Vale lembrar
aqui que quando Obadias acusa Edom de “orgulho” e “sabedoria” (o v. 8 fala dos
“sábios de Edom”; o v. 3 fala da “arrogância dos seus pensamentos”; o v. 12
fala de “insolência”), ele está usando conceitos do âmbito político na
tradição profética (p. ex. Is 2.11-17; 14.11-23; Ez 27). Assim, não se trata de
uma culpa de todo o povo de Edom, e sim de seus líderes, políticos e militares.
[10]
Para um bom resumo da relação entre os profetas canônicos e as tradições da
profecia cúltica, ver H. H. Rowley, “Ritual and the Hebrew Prophets”, 249-258, em Myth,
Ritual and Kingship (editado por S. H. Hooke). Rowley conclui que não é
possível fazer divisões claras entre as classes de profetas e que os profetas
canônicos, ocasionalmente, moldaram algumas de suas passagens conforme
composições litúrgicas familiares. Rowley admite, apesar de relutantemente, que
a literatura profética contém material cúltico. Esse material, como foi dito,
aparece mais em contextos de oráculos de julgamento contra as nações e contra
Israel/ Judá, como é o caso do “cântico da vinha” de Isaías 5, exatamente por
seu caráter polítco-militar.
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