A ideologia da
justiça real se torna uma parte integral do desejo por uma restauração do
governo davídico e da independência israelita naquela linha de pensamento a
qual, geralmente, chamamos de “messiânica”. Esse desejo seria o simples reflexo
da frustração de uma elite previamente governante, que teve seu governo passado
a outros, ou será que reflete um desejo pela própria justiça, diante do
fracasso de todos os governos existentes em realizá-la? Somente um extenso
exame de uma variedade de textos pode nos capacitar a responder a essa
pergunta.
Como vimos, a leitura profética ou
messiânica de Salmos 72 já está presente no texto hebraico tradicional, assim
como também se expressa nas versões e na exegese tradicional. Hinos cristãos a
respeito do advento se baseiam nele: estou pensando em “Saudação ao Messias” de
James Montgomery e “Cristo Jesus com Poder Reinará” de Isaac Watts. A ênfase do
texto na justiça para os pobres poderia ser vista como uma restrição nas formas
de lê-lo como uma profecia messiânica, mas isso não parece ter sido
inteiramente deixado de lado pelas leituras tradicionais.
No entanto, existem exemplos
significativos de leituras atentas do salmo nos quais os verbos são lidos, até
onde é possível, como indicativos que se referem ao futuro: a LXX[1] é um
exemplo antigo e a Bíblia de Jerusalém é um exemplo contemporâneo. O salmo,
portanto, anuncia a justiça do vindouro governo do rei, a abundância de paz e
prosperidade em seus dias, seu governo eterno por todo o mundo; então afirma
(Sl 72.12): “porque ele acode ao
necessitado que clama e também ao aflito e ao desvalido”. A Bíblia de Jerusalém, porém, nem mesmo
traduz o kî,[2] de forma
que o anúncio sobre o interesse do rei pelos pobres é outro aspecto da bondade
de seu governo, mas não é tão claramente apresentado como uma característica
central. A LXX, que oferece um entendimento exegético antigo, traduz a
conjunção com hoti, “porque”, e
curiosamente troca o tempo para o passado no v. 12, antes de voltar para o
tempo futuro no v. 13.[3] “Todos
os reis o adorarão, todas as nações o servirão, porque ele acudiu o destituído
das mãos do poderoso,[4] e o
pobre que não tinha quem o ajudasse”. Assim, o salmo continua dizendo que a
opção do rei pelos pobres é a condição para seu governo universal. Não se trata
mais de apresentar essa característica a Deus como motivo para que ele lhe
garanta esse privilégio. Pelo contrário, o salmo agora pode ser lido como se
estivesse dizendo que as nações se submetem a ele de livre vontade como
resposta a sua justiça. O salmo ainda está dizendo que a justiça feita aos
pobres o qualifica para o reinado. Pelo menos neste texto, a expectativa de um
reino restaurado é a expectativa de uma comunidade de justiça.
Acima, fizemos referência às
profecias davídicas em Jeremias e Ezequiel. Nesses casos, apesar de o contexto
histórico ser a perda da soberania judaíta, o contexto literário não deixa
dúvidas de que a função do rei vindouro é providenciar “justiça e retidão”,
buscadas em vão nos representantes históricos da dinastia. As tradições desses
livros, e mesmo os seus contextos imediatos, são suficientemente antagônicos ao
estabelecimento real, tornando improvável que representem a ideologia real. Seu
argumento não é que se pode confiar que a casa de Davi providenciará justiça
social, e sim que na providência de Deus, um futuro descendente de Davi
cumprirá aquilo que é esperado do agente de YHWH, o Deus da justiça, pois os
membros anteriores dessa casa não o fizeram.
Já vimos como o livro de Isaías
representa as tradições da casa de Davi. Reconhece-se, geralmente, que as
tradições davídicas foram levadas a diante após o fim do reino e aparecem em
diversas ocasiões neste livro. Em Isaías 1-39, tais textos podem incluir Is
9.2-7 (heb. 1-6); 11.1-9 e 16.4b-5. Já abordei rapidamente Is 9.7, que parece
enraizado na ocupação assíria, e Is 16.4-5, que é breve e sem elaboração, mas
também parece ser anterior à queda da dinastia. Também existe a profecia ou,
melhor, a meditação na verdadeira nobreza em Is 32.1-8. Esse texto não é típico
do padrão “messiânico”, e o abordarei no próximo capítulo.
Isaías 11.1-9 tem interesse na
sociedade justa, que é garantida pelo rei justo. O texto se divide em duas
partes bem marcadas: Is 11.1-5 detalha os dons e a atividade do “rebento” de
Davi, mas ele nem é mencionado nos próximos quatro versículos, que apresenta
uma imagem do paraíso de paz, o resultado de a terra estar cheia do
conhecimento de YHWH.
A passagem é uma visão do futuro
indefinido depois da queda da dinastia histórica de Davi: “do tronco de Jessé
sairá um rebento”.[5]
Is 11.2 anuncia como YHWH capacita o rei vindouro com vários dons necessários,
incluindo “conhecimento e temor de YHWH”,[6] um tema
que reaparece no fim do poema. A forma de esses dons serem exercidos é
trabalhada inteiramente no campo da justiça. Is 11.3 diz que em sua capacidade
judicial, o Messias não se baseará em aparências ou no que as testemunhas lhe
dizem, mas julgará de acordo com o seu dom de entendimento; na prática,
provavelmente isso significa, à luz do que se segue, que ele rejeita o processo
iniciado pelos ricos e decide em favor dos direitos dos pobres e humildes. Em
Is 11.4 fica claro que sua justiça significa, especialmente, sua justiça aos
pobres[7] a quem
defende, mesmo que seja necessário levar à morte os exploradores, o “tirano” ou
“violento”[8] e o
“injusto”. O entendimento da justiça e de como ela é alcançada é idêntico ao
que está em Salmos 72.[9] Seja
qual for a capacitação sobrenatural do rei messiânico, estamos no mundo real,
onde há exploradores poderosos que precisam ser lidados com firmeza, se
necessário, com violência. Não deveria ser pressuposto, necessariamente, que a
imagem do rei ferindo “a terra com a vara de sua boca” significa que suas
palavras têm, em si mesmas, algum poder sobrenatural de matar. Mas elas, de
fato, expressam a sentença de Deus, portanto são o prenúncio da morte dos
malfeitores.
Texto original: Contending for Justice, pp. 153-5 © Walter J.
Houston, 2006, T&T Clark International, usado com permissão de Bloomsbury
Publishing Plc.
Tradução: Caio Peres
Tradução: Caio Peres
[1]
Referência à Septuaginta, tradução grega do Antigo Testamento (nota do
tradutor).
[2]
A conjunção que é traduzida como “porque” na versão em português utilizada aqui
(nota do tradutor).
[3]
erusato (aoristo); huperkhen (imperfeito).
[4]
A LXX lê o hebraico mishshôa‘, “de um
nobre”, em lugar de meshawwēa‘,
“que clama”. Não há diferença consonantal implicada no texto.
[5]
Até mesmo Wildberger, que considera Isaías o autor deste trecho, vê que essas
palavras visam “a destituição da família real” (Wildberger, Isaias 1-12: A Commentary, 470).
[6]
Ou possivelmente “o conhecimento e temor de YHWH”.
[7]
O paralelismo com dallîm na primeira
metade do versículo mostra que le‘naewê
’ārets não significa “os mansos da terra”, e sim “os pobres da terra”; não
é necessário, porém, fazer uma emenda para la‘aniyyê
como a BHS e, hesitantemente, Wildberger (461); ver Gerstenberger em TDOT XI, 242.
[8] Lendo ‘arīts
e não ’erets, “terra”, que a NRSV surpreendentemente ainda mantém;
Wildberger (461) considera essa emenda “quase que universalmente aceita”.
[9]
Broyles (“The Redeeming King: Psalm 72’s Contribution to the Messianic Ideal”,
30-33) encontra ecos específicos de Salmos 72 em Isaías 11.4, e também em Is
9.6-7; Zc 9.9-10 e Jr 21.12; 22.3,16. Mas além de Zacarias 9.10 (cf. Sl 72.8) a
linguagem é específica ao assunto e não a Salmos 72 em particular.