quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Esperando pelo Rei Justo por Walter J. Houston



A ideologia da justiça real se torna uma parte integral do desejo por uma restauração do governo davídico e da independência israelita naquela linha de pensamento a qual, geralmente, chamamos de “messiânica”. Esse desejo seria o simples reflexo da frustração de uma elite previamente governante, que teve seu governo passado a outros, ou será que reflete um desejo pela própria justiça, diante do fracasso de todos os governos existentes em realizá-la? Somente um extenso exame de uma variedade de textos pode nos capacitar a responder a essa pergunta.


            Como vimos, a leitura profética ou messiânica de Salmos 72 já está presente no texto hebraico tradicional, assim como também se expressa nas versões e na exegese tradicional. Hinos cristãos a respeito do advento se baseiam nele: estou pensando em “Saudação ao Messias” de James Montgomery e “Cristo Jesus com Poder Reinará” de Isaac Watts. A ênfase do texto na justiça para os pobres poderia ser vista como uma restrição nas formas de lê-lo como uma profecia messiânica, mas isso não parece ter sido inteiramente deixado de lado pelas leituras tradicionais.


            No entanto, existem exemplos significativos de leituras atentas do salmo nos quais os verbos são lidos, até onde é possível, como indicativos que se referem ao futuro: a LXX[1] é um exemplo antigo e a Bíblia de Jerusalém é um exemplo contemporâneo. O salmo, portanto, anuncia a justiça do vindouro governo do rei, a abundância de paz e prosperidade em seus dias, seu governo eterno por todo o mundo; então afirma (Sl 72.12): “porque ele acode ao necessitado que clama e também ao aflito e ao desvalido”.  A Bíblia de Jerusalém, porém, nem mesmo traduz o ,[2] de forma que o anúncio sobre o interesse do rei pelos pobres é outro aspecto da bondade de seu governo, mas não é tão claramente apresentado como uma característica central. A LXX, que oferece um entendimento exegético antigo, traduz a conjunção com hoti, “porque”, e curiosamente troca o tempo para o passado no v. 12, antes de voltar para o tempo futuro no v. 13.[3] “Todos os reis o adorarão, todas as nações o servirão, porque ele acudiu o destituído das mãos do poderoso,[4] e o pobre que não tinha quem o ajudasse”. Assim, o salmo continua dizendo que a opção do rei pelos pobres é a condição para seu governo universal. Não se trata mais de apresentar essa característica a Deus como motivo para que ele lhe garanta esse privilégio. Pelo contrário, o salmo agora pode ser lido como se estivesse dizendo que as nações se submetem a ele de livre vontade como resposta a sua justiça. O salmo ainda está dizendo que a justiça feita aos pobres o qualifica para o reinado. Pelo menos neste texto, a expectativa de um reino restaurado é a expectativa de uma comunidade de justiça.


            Acima, fizemos referência às profecias davídicas em Jeremias e Ezequiel. Nesses casos, apesar de o contexto histórico ser a perda da soberania judaíta, o contexto literário não deixa dúvidas de que a função do rei vindouro é providenciar “justiça e retidão”, buscadas em vão nos representantes históricos da dinastia. As tradições desses livros, e mesmo os seus contextos imediatos, são suficientemente antagônicos ao estabelecimento real, tornando improvável que representem a ideologia real. Seu argumento não é que se pode confiar que a casa de Davi providenciará justiça social, e sim que na providência de Deus, um futuro descendente de Davi cumprirá aquilo que é esperado do agente de YHWH, o Deus da justiça, pois os membros anteriores dessa casa não o fizeram.


            Já vimos como o livro de Isaías representa as tradições da casa de Davi. Reconhece-se, geralmente, que as tradições davídicas foram levadas a diante após o fim do reino e aparecem em diversas ocasiões neste livro. Em Isaías 1-39, tais textos podem incluir Is 9.2-7 (heb. 1-6); 11.1-9 e 16.4b-5. Já abordei rapidamente Is 9.7, que parece enraizado na ocupação assíria, e Is 16.4-5, que é breve e sem elaboração, mas também parece ser anterior à queda da dinastia. Também existe a profecia ou, melhor, a meditação na verdadeira nobreza em Is 32.1-8. Esse texto não é típico do padrão “messiânico”, e o abordarei no próximo capítulo. 


            Isaías 11.1-9 tem interesse na sociedade justa, que é garantida pelo rei justo. O texto se divide em duas partes bem marcadas: Is 11.1-5 detalha os dons e a atividade do “rebento” de Davi, mas ele nem é mencionado nos próximos quatro versículos, que apresenta uma imagem do paraíso de paz, o resultado de a terra estar cheia do conhecimento de YHWH. 


            A passagem é uma visão do futuro indefinido depois da queda da dinastia histórica de Davi: “do tronco de Jessé sairá um rebento”.[5] Is 11.2 anuncia como YHWH capacita o rei vindouro com vários dons necessários, incluindo “conhecimento e temor de YHWH”,[6] um tema que reaparece no fim do poema. A forma de esses dons serem exercidos é trabalhada inteiramente no campo da justiça. Is 11.3 diz que em sua capacidade judicial, o Messias não se baseará em aparências ou no que as testemunhas lhe dizem, mas julgará de acordo com o seu dom de entendimento; na prática, provavelmente isso significa, à luz do que se segue, que ele rejeita o processo iniciado pelos ricos e decide em favor dos direitos dos pobres e humildes. Em Is 11.4 fica claro que sua justiça significa, especialmente, sua justiça aos pobres[7] a quem defende, mesmo que seja necessário levar à morte os exploradores, o “tirano” ou “violento”[8] e o “injusto”. O entendimento da justiça e de como ela é alcançada é idêntico ao que está em Salmos 72.[9] Seja qual for a capacitação sobrenatural do rei messiânico, estamos no mundo real, onde há exploradores poderosos que precisam ser lidados com firmeza, se necessário, com violência. Não deveria ser pressuposto, necessariamente, que a imagem do rei ferindo “a terra com a vara de sua boca” significa que suas palavras têm, em si mesmas, algum poder sobrenatural de matar. Mas elas, de fato, expressam a sentença de Deus, portanto são o prenúncio da morte dos malfeitores.


Texto original: Contending for Justice, pp. 153-5 © Walter J. Houston, 2006, T&T Clark International, usado com permissão de Bloomsbury Publishing Plc.

Tradução: Caio Peres





[1] Referência à Septuaginta, tradução grega do Antigo Testamento (nota do tradutor).


[2] A conjunção que é traduzida como “porque” na versão em português utilizada aqui (nota do tradutor).


[3] erusato (aoristo); huperkhen (imperfeito).


[4] A LXX lê o hebraico mishshôa‘, “de um nobre”, em lugar de meshawwēa‘, “que clama”. Não há diferença consonantal implicada no texto.


[5] Até mesmo Wildberger, que considera Isaías o autor deste trecho, vê que essas palavras visam “a destituição da família real” (Wildberger, Isaias 1-12: A Commentary, 470).


[6] Ou possivelmente “o conhecimento e temor de YHWH”.


[7] O paralelismo com dallîm na primeira metade do versículo mostra que le‘naewê ’ārets não significa “os mansos da terra”, e sim “os pobres da terra”; não é necessário, porém, fazer uma emenda para la‘aniyyê como a BHS e, hesitantemente, Wildberger (461); ver Gerstenberger em TDOT XI, 242.


[8]  Lendo ‘arīts e não ’erets, “terra”, que a NRSV surpreendentemente ainda mantém; Wildberger (461) considera essa emenda “quase que universalmente aceita”. 



[9] Broyles (“The Redeeming King: Psalm 72’s Contribution to the Messianic Ideal”, 30-33) encontra ecos específicos de Salmos 72 em Isaías 11.4, e também em Is 9.6-7; Zc 9.9-10 e Jr 21.12; 22.3,16. Mas além de Zacarias 9.10 (cf. Sl 72.8) a linguagem é específica ao assunto e não a Salmos 72 em particular.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Lucas 13.18-19: A Parábola do Grão de Mostarda por Halvor Moxnes


Então Jesus perguntou: ‘Com que se parece o Reino de Deus? Com que o compararei? É como um grão de mostarda que um homem lançou em sua horta. Ele cresceu e se tornou uma árvore, e as aves do céu fizeram ninhos em seus ramos’”.

Esta é uma das parábolas de Jesus com melhor documentação, sendo atestada em três testemunhos: Q[1] 13.18-19 (Mateus 13.31-32); Marcos 4.30-32; Evangelho de Tomé 20.[2] Marcos e Tomé nos dizem, explicitamente, que o grão de mostarda é a menor semente que existe. Essa informação estabelece o contraste entre o desprezível começo e o fim maravilhoso. Em Marcos, a ideia se expressa assim: “… cresce, torna-se a maior de todas as hortaliças e estende grandes ramos”; em Tomé: “produz uma grande planta”. O resultado final é extraordinário; a menor das sementes se torna a maior de todas as hortaliças! Isso torna possível uma leitura do texto como uma parábola sobre “pequenos começos com grandes resultados”. Essa seria uma história comum sobre inversões de um conjunto de expectativas lógicas. Deus viria como o poderoso rei para realizar seu (previsível) milagre.

            Não é isso o que acontece na parábola em Q; em sua versão, a parábola critica esse tipo de expectativa em vez de fundamentá-la.[3] A versão de Q tem algumas características distintas que a fazem divergir do desenvolvimento linear que aparece em outras versões. Aquele que semeia o grão de mostarda é chamado de “um homem”, e ele age de forma estranha, “lançando” o grão de mostarda em sua horta. E há diferenças significativas na descrição do grão de mostarda. O fato de ele ser a menor das sementes não é mencionado, portanto Q não utiliza o contraste de tamanho entre “o menor” e “a maior das hortaliças”. Pelo contrário, Q fala de um contraste de qualidade: o grão de mostarda “cresceu e se tornou uma árvore”. O comportamento estranho do homem, assim como a transformação ainda mais estranha de um grão de hortaliça em uma árvore, sugere que há algo mais do que a questão de pequenos começos e um grande final. Há algo de estranho acontecendo.

            Não é correto dizer que o reino é como um pequeno começo que, com o passar do tempo, miraculosamente resulta num grande final. Em vez disso, aquilo com o que o reino “se parece” é apresentado com uma combinação de imagens ambíguas e contrastantes de “um grão de mostarda numa horta” e uma “árvore”. A história do grão de mostarda acontece numa horta. Esse é o ambiente característico da casa e da família. Mas, então, a imagem muda para a árvore. E a árvore se encontra, pelas associações bíblicas, em outro ambiente, como veremos – a grande árvore é um símbolo político que aponta para o poder do povo ou de um governante. A própria imagem do grão de mostarda na horta é estranha; é a imagem de alguma coisa “deslocada”. Era bem sabido que o grão de mostarda se multiplica facilmente, portanto, se semeada numa horta, espalha-se por todo lado. Talvez esse seja um dos motivos de existirem regulamentos para que ela não fosse plantada numa horta; ela era considerada impura. A estranha imagem do homem que lança o grão de mostarda na horta, em Q 13.18, pode ter a ver com isso. A imagem sugere que ele o faz furtivamente – já que não se deveria colocar um grão de mostarda em sua horta. Semeá-la poderia ir contra as leis de não se misturar sementes.[4] Assim, o grão de mostarda é, desde o início, impuro e o reino de Deus é associado com o impuro que foi colocado no lugar errado.[5]

            Portanto, a versão de Q sinaliza algum acontecimento estranho. E a estranheza aumenta com a imagem do resultado final. A imagem final da árvore, na qual o grão de mostarda se tornou, parece moldada de acordo com o seu propósito: “as aves do céu fizeram ninhos em seus ramos”.[6] Essa parece uma imagem simples, ainda no contexto doméstico e agrário. Mas há algo maior do que uma imagem de horta aqui; a imagem é carregada de associações. Aqui está uma metáfora que seria reconhecida como fazendo referência à imagem da “grande árvore”, a mítica “árvore do mundo”. Na tradição bíblica, a grande árvore simboliza nações. O exemplo mais significativo era o grande cedro do Líbano, o qual, por ser orgulhoso, seria destruído. Em Ezequiel 31.2-6, o cedro é usado como uma metáfora para o Faraó. É num conjunto semelhante de imagens, em Ezequiel 17.22-24, que um broto, que Deus irá tirar de um cedro, se torna um símbolo para Israel. Deus o plantará no topo das montanhas de Israel. Ele se tornará um “nobre cedro” e “aves de todo tipo habitarão debaixo dele; elas habitarão a sombra dos seus galhos”. Portanto, o local da árvore já não é mais a horta ou o domicílio. A árvore se encontra no contexto político. O grande cedro, com muitas aves aninhadas em seus ramos, era uma imagem que combinava com o reino de Deus.

            O ouvinte, porém, que tenta ver nesta parábola aquilo com o qual o reino se parece, terá que lidar com dois ambientes completamente diferentes: o pequeno grão de mostarda lançado numa horta que se torna impura e, em contraste, a grande árvore da nação, uma protetora das aves do céu. É óbvio que a segunda imagem combina melhor com o reino. No entanto, as duas imagens contrastantes permanecem lado a lado na parábola. O resultado da parábola é que o reino de Deus se parece tanto com o grão de mostarda quanto com a árvore. O contraste entre as imagens permanece, não somente de forma irônica, mas também crítica. Colocar o arbusto de mostarda no papel da árvore é zombar do cedro; se torna uma imagem burlesca.[7] O cedro era uma imagem das ambições de Israel, a esperança de um povo. Nesse sentido, era uma imagem política. Esse papel, agora, é desafiado pela associação com o grão de mostarda na horta que fica impura. 

            Os dois locais, a casa e a horta, e a árvore e a política, são preservados, mas são colocados um contra o outro e combinados de uma maneira inesperada. A parábola não faz parte da linha de oposição dialética do pequeno contra o grande; a dialética é bagunçada por uma transmutação para uma terceira alternativa: numa horta a semente impura se torna a árvore da salvação.[8] Como um “lugar imaginado”, esse é um reino estranho; ele é esquisito no sentido de questionar identidades e borrar as distinções entre o impuro e o orgulhoso, o privado e o político. 

            Isso somente pode acontecer no estranho e mágico mundo de um “lugar imaginado”. Uma interpretação em termos de paradigma temporal, com sua dialética entre “pequeno” e “grande”, não compreende essa combinação estranha de imagens de lugares. Uma interpretação temporal se foca no processo daquilo que o reino se tornará e, como resultado, o significado do próprio reino permanece sem ser questionado, portanto, continua tradicional. Contudo, ao ser lida em termos de imagens espaciais que são contrastantes e simultâneas, a parábola funciona diferentemente. Ela apresenta o reino de uma forma contra-cultural e não convencional, que tanto questiona a pureza da horta domiciliar quanto ridiculariza a imagem política do reino como a grande árvore. Dessa forma, a parábola do grão de mostarda apresenta um contexto adequado para um reino feito de eunucos.[9] Esta e outras parábolas de Jesus apresentam o reino com qualidades esquisitas, por meio de imagens que representam diversos “lugares imaginados” diferentes.[10] Muitas dessas imagens não eram imediatamente associadas com reinos, mas introduziam novas localidades na imaginação daquilo com o qual o reino de Deus se parecia. O aspecto imprevisível e não-convencional fez o reino se tornar algo com o qual os seguidores de Jesus, em posição de liminaridade, poderiam se identificar. 

Texto original: Putting Jesus in His Place, pp. 111-3 © 2003 Halvor Moxnes. Usado com permissão de Westminster John Knox Press. Todos os direitos reservados.

Tradução: Caio Peres 


[1] Q é uma referência a uma fonte textual hipotética para explicar dizeres de Jesus coincidentes em Lucas e Mateus (nota do tradutor).

[2] As versões em Marcos e no Evangelho de Tomé (e parcialmente em Mateus) compartilham uma estrutura comum em quatro partes: (a) o grão de mostarda é uma referência ao reino; (b) o grão é inserido no solo; (c) o grão produz um crescimento muito maior; (d) esse crescimento final oferece abrigo para os pássaros. Ver W. Cotter, “The Parable of the Mustard Seed and the Leaven: Their Function in the Earliest Stratum of Q”, Toronto Journal of Theology 8 (1992). Cotter não menciona o quanto a versão em Q é diferente.

[3] Ver Stephen J. Patterson, “Wisdom in Q and Thomas”, in Search of Wisdom (ed. Leo G. Perdue et al.; Louisville: Westminster/ John Knox, 1993), 201-5.

[4] Levítico 19.19 (nota do tradutor).

[5] B. B. Scott, Hear Then the Parable, 381-83.

[6] Evangelho de Tomé 20 tem a afirmação mais simples; Marcos e Q têm a versão que é moldada de forma mais próxima aos textos bíblicos: “as aves do céu fizeram ninhos em seus ramos” (Q 13.19).

[7] Robert W. Funk, Jesus as Precursor (Semeia Suppl. 2; Filadelfia: Fortress, 1975), 19-28.

[8] E. W. Soja (Postmodern Geographies, 268-69) fala de um “terceiro espaço”, que não surge a partir da oposição binária ou da contradição, mas “busca desordenar, desconstruir e tenta reconstituir, em uma forma diferente, toda a sequência e a lógica dialética”. Soja fala que esse “terceiro espaço” não é uma síntese dialética, e sim o representante de algo “outro” que desfaz os opostos dialéticos: “Ele muda o ‘ritmo’ do pensamento dialético de um modo temporal para um mais espacial, de uma sequência linear ou diacrônica para as simultaneidades e sincronias configurativas”. 

[9] A composição do reino de Deus é abordada pelo autor no capítulo anterior, daí sua menção de eunucos, pois ele caracteriza o reino de Deus composto por eunucos, mulheres inférteis e crianças pré-sexuais (nota do tradutor).

[10] Ver a parábola seguinte, sobre a mulher e o fermento, Q 13.20-21, e a parábola do Bom Samaritano, Lucas 10.29-37.