“Então Jesus perguntou: ‘Com que se
parece o Reino de Deus? Com que o compararei? É como um
grão de mostarda que um homem lançou em sua horta. Ele cresceu e se tornou uma
árvore, e as aves do céu fizeram ninhos em seus ramos’”.
Esta é uma
das parábolas de Jesus com melhor documentação, sendo atestada em três
testemunhos: Q[1]
13.18-19 (Mateus 13.31-32); Marcos 4.30-32; Evangelho
de Tomé 20.[2]
Marcos e Tomé nos dizem,
explicitamente, que o grão de mostarda é a menor semente que existe. Essa
informação estabelece o contraste entre o desprezível começo e o fim
maravilhoso. Em Marcos, a ideia se expressa assim: “… cresce, torna-se a maior
de todas as hortaliças e estende grandes ramos”; em Tomé: “produz uma grande planta”. O resultado final é
extraordinário; a menor das sementes se torna a maior de todas as hortaliças!
Isso torna possível uma leitura do texto como uma parábola sobre “pequenos
começos com grandes resultados”. Essa seria uma história comum sobre inversões
de um conjunto de expectativas lógicas. Deus viria como o poderoso rei para
realizar seu (previsível) milagre.
Não é isso o que acontece na
parábola em Q; em sua versão, a parábola critica esse tipo de expectativa em
vez de fundamentá-la.[3] A versão
de Q tem algumas características distintas que a fazem divergir do
desenvolvimento linear que aparece em outras versões. Aquele que semeia o grão
de mostarda é chamado de “um homem”, e ele age de forma estranha, “lançando” o
grão de mostarda em sua horta. E há diferenças significativas na descrição do
grão de mostarda. O fato de ele ser a menor das sementes não é mencionado,
portanto Q não utiliza o contraste de tamanho entre “o menor” e “a maior das
hortaliças”. Pelo contrário, Q fala de um contraste de qualidade: o grão de
mostarda “cresceu e se tornou uma árvore”. O comportamento estranho do homem,
assim como a transformação ainda mais estranha de um grão de hortaliça em uma
árvore, sugere que há algo mais do que a questão de pequenos começos e um
grande final. Há algo de estranho acontecendo.
Não é correto dizer que o reino é
como um pequeno começo que, com o passar do tempo, miraculosamente resulta num
grande final. Em vez disso, aquilo com o que o reino “se parece” é apresentado com
uma combinação de imagens ambíguas e contrastantes de “um grão de mostarda numa
horta” e uma “árvore”. A história do grão de mostarda acontece numa horta. Esse
é o ambiente característico da casa e da família. Mas, então, a imagem muda
para a árvore. E a árvore se encontra, pelas associações bíblicas, em outro
ambiente, como veremos – a grande árvore é um símbolo político que aponta para
o poder do povo ou de um governante. A própria imagem do grão de mostarda na
horta é estranha; é a imagem de alguma coisa “deslocada”. Era bem sabido que o
grão de mostarda se multiplica facilmente, portanto, se semeada numa horta, espalha-se
por todo lado. Talvez esse seja um dos motivos de existirem regulamentos para
que ela não fosse plantada numa horta; ela era considerada impura. A estranha imagem
do homem que lança o grão de mostarda na horta, em Q 13.18, pode ter a ver com
isso. A imagem sugere que ele o faz furtivamente – já que não se deveria
colocar um grão de mostarda em sua horta. Semeá-la poderia ir contra as leis de
não se misturar sementes.[4] Assim, o
grão de mostarda é, desde o início, impuro e o reino de Deus é associado com o
impuro que foi colocado no lugar errado.[5]
Portanto, a versão de Q sinaliza
algum acontecimento estranho. E a estranheza aumenta com a imagem do resultado
final. A imagem final da árvore, na qual o grão de mostarda se tornou, parece
moldada de acordo com o seu propósito: “as aves do céu fizeram ninhos em seus
ramos”.[6] Essa
parece uma imagem simples, ainda no contexto doméstico e agrário. Mas há algo
maior do que uma imagem de horta aqui; a imagem é carregada de associações.
Aqui está uma metáfora que seria reconhecida como fazendo referência à imagem
da “grande árvore”, a mítica “árvore do mundo”. Na tradição bíblica, a grande
árvore simboliza nações. O exemplo mais significativo era o grande cedro do
Líbano, o qual, por ser orgulhoso, seria destruído. Em Ezequiel 31.2-6, o cedro
é usado como uma metáfora para o Faraó. É num conjunto semelhante de imagens,
em Ezequiel 17.22-24, que um broto, que Deus irá tirar de um cedro, se torna um
símbolo para Israel. Deus o plantará no topo das montanhas de Israel. Ele se
tornará um “nobre cedro” e “aves de todo tipo habitarão debaixo dele; elas
habitarão a sombra dos seus galhos”. Portanto, o local da árvore já não é mais
a horta ou o domicílio. A árvore se encontra no contexto político. O grande
cedro, com muitas aves aninhadas em seus ramos, era uma imagem que combinava
com o reino de Deus.
O ouvinte, porém, que tenta ver
nesta parábola aquilo com o qual o reino se parece, terá que lidar com dois
ambientes completamente diferentes: o pequeno grão de mostarda lançado numa
horta que se torna impura e, em contraste, a grande árvore da nação, uma
protetora das aves do céu. É óbvio que a segunda imagem combina melhor com o
reino. No entanto, as duas imagens contrastantes permanecem lado a lado na
parábola. O resultado da parábola é que o reino de Deus se parece tanto com o
grão de mostarda quanto com a árvore. O contraste entre as imagens permanece,
não somente de forma irônica, mas também crítica. Colocar o arbusto de mostarda
no papel da árvore é zombar do cedro; se torna uma imagem burlesca.[7] O cedro
era uma imagem das ambições de Israel, a esperança de um povo. Nesse sentido,
era uma imagem política. Esse papel, agora, é desafiado pela associação com o
grão de mostarda na horta que fica impura.
Os dois locais, a casa e a horta, e
a árvore e a política, são preservados, mas são colocados um contra o outro e
combinados de uma maneira inesperada. A parábola não faz parte da linha de
oposição dialética do pequeno contra o grande; a dialética é bagunçada por uma
transmutação para uma terceira alternativa: numa horta a semente impura se
torna a árvore da salvação.[8] Como um
“lugar imaginado”, esse é um reino estranho; ele é esquisito no sentido de
questionar identidades e borrar as distinções entre o impuro e o orgulhoso, o
privado e o político.
Isso somente pode acontecer no
estranho e mágico mundo de um “lugar imaginado”. Uma interpretação em termos de
paradigma temporal, com sua dialética entre “pequeno” e “grande”, não
compreende essa combinação estranha de imagens de lugares. Uma interpretação
temporal se foca no processo daquilo que o reino se tornará e, como resultado,
o significado do próprio reino permanece sem ser questionado, portanto,
continua tradicional. Contudo, ao ser lida em termos de imagens espaciais que
são contrastantes e simultâneas, a parábola funciona diferentemente. Ela apresenta
o reino de uma forma contra-cultural e não convencional, que tanto questiona a
pureza da horta domiciliar quanto ridiculariza a imagem política do reino como
a grande árvore. Dessa forma, a parábola do grão de mostarda apresenta um
contexto adequado para um reino feito de eunucos.[9] Esta e
outras parábolas de Jesus apresentam o reino com qualidades esquisitas, por
meio de imagens que representam diversos “lugares imaginados” diferentes.[10] Muitas
dessas imagens não eram imediatamente associadas com reinos, mas introduziam
novas localidades na imaginação daquilo com o qual o reino de Deus se parecia.
O aspecto imprevisível e não-convencional fez o reino se tornar algo com o qual
os seguidores de Jesus, em posição de liminaridade, poderiam se identificar.
Texto original: Putting Jesus in His Place, pp. 111-3 © 2003 Halvor Moxnes. Usado com
permissão de Westminster John Knox Press. Todos os direitos reservados.
Tradução: Caio Peres
Tradução: Caio Peres
[1] Q é uma referência a
uma fonte textual hipotética para explicar dizeres de Jesus coincidentes em
Lucas e Mateus (nota do tradutor).
[2]
As versões em Marcos e no Evangelho de
Tomé (e parcialmente em Mateus) compartilham uma estrutura comum em quatro
partes: (a) o grão de mostarda é uma referência ao reino; (b) o grão é inserido
no solo; (c) o grão produz um crescimento muito maior; (d) esse crescimento
final oferece abrigo para os pássaros. Ver W. Cotter, “The Parable of the Mustard Seed and the Leaven: Their
Function in the Earliest Stratum of Q”, Toronto
Journal of Theology 8 (1992). Cotter não menciona o quanto a versão
em Q é diferente.
[3] Ver Stephen J. Patterson,
“Wisdom in Q and Thomas”, in Search of
Wisdom (ed. Leo G. Perdue et al.; Louisville: Westminster/ John Knox,
1993), 201-5.
[4] Levítico 19.19 (nota do tradutor).
[5] B. B. Scott, Hear Then the Parable, 381-83.
[6]
Evangelho de Tomé 20 tem a afirmação
mais simples; Marcos e Q têm a versão que é moldada de forma mais próxima aos
textos bíblicos: “as aves do céu fizeram ninhos em seus ramos” (Q 13.19).
[7]
Robert W. Funk, Jesus as Precursor
(Semeia Suppl. 2; Filadelfia: Fortress, 1975), 19-28.
[8]
E. W. Soja (Postmodern Geographies,
268-69) fala de um “terceiro espaço”, que não surge a partir da oposição
binária ou da contradição, mas “busca desordenar, desconstruir e tenta
reconstituir, em uma forma diferente, toda a sequência e a lógica dialética”.
Soja fala que esse “terceiro espaço” não é uma síntese dialética, e sim o representante
de algo “outro” que desfaz os opostos dialéticos: “Ele muda o ‘ritmo’ do
pensamento dialético de um modo temporal para um mais espacial, de uma
sequência linear ou diacrônica para as simultaneidades e sincronias
configurativas”.
[9]
A composição do reino de Deus é abordada pelo autor no capítulo anterior, daí
sua menção de eunucos, pois ele caracteriza o reino de Deus composto por
eunucos, mulheres inférteis e crianças pré-sexuais (nota do tradutor).
[10]
Ver a parábola seguinte, sobre a mulher e o fermento, Q 13.20-21, e a parábola
do Bom Samaritano, Lucas 10.29-37.
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