Para os leitores do último post,
pode ter ficado a impressão que, no fim, os estrangeiros, representados por
Agar, somente participarão da bênção divina, por meio da família de Abraão,
caso se submetam à autoridade coerciva do povo de Deus, representado por Abraão
e Sara. No entanto, o desenrolar das narrativas patriarcais apontam para outra
direção. A própria família eleita precisará sofrer, como Agar sofreu, a fim de
se tornar intermediária da bênção divina. A razão disso é que as intrigas e
resoluções inconclusivas, o que significa que nunca há uma justiça absoluta
para todos os lados do conflito, permeiam as próprias relações da própria família
de Abraão. Conflitos surgem no ciclo[1]
de Isaque, em que o relacionamento entre Esaú e Jacó é caracterizado por
disputas, mentiras, ameaças de morte e fuga. Essa situação se desenrola no
ciclo de Jacó, com disputas, mentiras, ameaças de morte e fuga que ocorrem na
relação entre José e seus irmãos. Continuaremos em busca de uma relação entre a
dinâmica da família de Abraão, na narrativa de José e seus irmãos, e a
preservação do cosmo. No entanto, essa abordagem completa será dividida em dois
posts, como explicarei logo abaixo.
Toda a narrativa do
conflito entre José e seus irmãos tem um script bem claro: os dois
sonhos de José (Gn 37.5-10). Ainda que tais sonhos possam expressar as
fantasias de um jovem mimado e pretensioso, o texto os utiliza como linha
narrativa, mas não necessariamente para confirmar as pretensões de José. Toda a
narrativa é permeada por diversos sonhos. No caso dos sonhos do padeiro e do
copeiro (Gn 40), e dos sonhos do faraó (Gn 41.1-36), o texto deixa claro que os
sonhos são revelação daquilo que Deus está para realizar (cf. Gn 41.25). Não há
afirmação semelhante no caso dos sonhos de José, pois há uma tensão sobre o
significado dos sonhos. A família de José os interpreta de uma forma, mas o
desenrolar da história de José apresenta outra interpretação. Será necessário
aguardar um pouco até que a revelação e a decisão divinas nos sonhos de José
apareçam de forma clara.[2]
Neste post, me dedicarei a
problematizar os sonhos de José, enquanto no próximo trarei à tona a revelação e
a decisão divinas que são bem diferentes de tudo o que se esperava a partir
desses sonhos.
Para começar, então precisamos
observar as imagens usadas nos sonhos. No primeiro sonho, a imagem é de “feixes
no campo” (Gn 37.7; heb. ’ălummîm betôk haśādeh). No segundo
sonho, a imagem é de corpos celestes: “o sol, a lua e onze estrelas” (Gn. 37.9;
heb. hashshemesh wehayyārēaḥ we’aḥad ‘āśār kôkābîm).
Essas imagens carregam importantes significados culturais e relações textuais
com outras partes da narrativa. Começaremos com a imagem do segundo sonho.
Enquanto a imagem de estrelas
poderia ser somente uma referência textual ao modo como Gênesis descreve a
multiplicidade da descendência de Abraão (cf. Gn 15.5; 22.17; 26.4), há algo
mais importante aqui. Em primeiro lugar, a imagem dos corpos celestes aponta
para uma realidade cósmica, ou seja, um contexto amplo que abrange toda a
realidade criada.[3]
O sonho de José revela que toda a dinâmica familiar apresentada nessa narrativa
está relacionada com o cosmo. Em segundo lugar, a imagem dos corpos celestes
aponta para a forma como essa dinâmica familiar se relaciona com o cosmo:
política.[4] Isso é
muito importante quando consideramos que o ambiente no qual José exercerá poder
político é o Egito, onde o faraó estava intimamente relacionado com o deus-Sol.[5] Já a
imagem da estrela é usada como símbolo de figuras reais no antigo Oriente
Próximo.[6] Isso
aparece mesmo em tradições bíblicas como Nm 24.17;[7] Is 14.12
e Ez 32.7.[8] Essa
esfera política aponta para o desenrolar das promessas de Deus feitas a Abraão.
Em Gênesis 17.6, a promessa divina de multiplicidade também é uma promessa de
proeminência política, pois também é dito que reis procederão de Abraão. Para
nosso estudo (ver post anterior),
porém, é mais importante que em Gênesis 17.16 a promessa é dada a Sara: “eu a
abençoarei, ela será mãe de nações, e dela procederão reis”. Assim, a história
de José tem a ver com o cumprimento dessa promessa. O segundo sonho de José
deixa claro que estamos lidando com o surgimento de um rei da descendência de
Abraão e Sara. Esse fato, especificamente em sua relação com a promessa feita a
Sara, é importante por dois motivos: o contexto da promessa em Gênesis 17 é o
conflito familiar do capítulo 16, como vimos no post passado, assim como o sonho de José está inserido num conflito
familiar; e parte desse conflito, tanto no caso de Sara com Agar quanto de José
e seus irmãos, tem a ver com o exercício de um poder coercivo. Assim,
poderíamos formular um questionamento: será que esse rei da linhagem de Abraão
e Sara levará a bênção divina aos povos por meio de um poder coercivo?[9]
Os sonhos de José parecem dar uma
resposta positiva a essa pergunta. No primeiro sonho de José, a imagem dos
“feixes no campo” é muito importante. Obviamente
não se trata de uma imagem do cotidiano típico de uma família nômade e
pastoril.[10]
Mais uma vez, a imagem poderia simplesmente indicar uma relação textual, pois o
governo de José no Egito se concentrará na “coleta” (Gn 41.48; heb. qābats)
e “estoque” (Gn 41.49; heb. tsābar) de “mantimento” (Gn 41.48; heb.’ōkel)
e “cereais” (Gn 41.49; heb. bar). É claro que essa relação existe,
apesar de o texto do capítulo 41 não usar o termo “feixes” aqui. O que é mais
importante, porém, é o significado cultural da imagem de “feixes no campo”. Existe
outra narrativa de conflito entre irmãos que acontece no “campo” (heb. śādeh):[11] Caim e
Abel (cf. Gn 4.8). Nessa narrativa fica clara uma tensão entre o estilo de vida
pastoril de Abel, típico do nomadismo patriarcal de Abraão, e o estilo de vida
agrário de Caim, típico das culturas sedentárias das monarquias urbanas.[12] No
desenrolar da história de Caim, fica claro que seu estilo de vida agrário está
relacionado com a construção de cidades (cf. Gn 4.17) e a cultura urbana (cf.
Gn 4.19-22), assim como a violência (cf. Gn 4.23-24), características que aparecerão na centralização
de poder do tipo monárquico da “Torre de Babel” (cf. Gn 10.8-10; 11.1-9). De
fato, a agricultura e a administração urbana formavam uma simbiose econômica,
na qual um poder monárquico tem as condições necessárias de exploração da
população que cultiva os campos, em benefício da população urbana, exatamente
como no Egito.[13]
Essa atitude monárquica tem conotações religiosas. Além do fato conhecido de
que os reis se viam e eram vistos como representantes divinos, o sonho de José
usa um verbo importante para a posição de seu feixe: “ficou em pé” (heb. nitstsābâ).
Esse verbo foi usado sobre a posição da escada no sonho de Jacó (Gn 28.12), e a
posição de YHWH ao seu lado (Gn 28.13).[14] Com
essa identificação textual, assim como o imaginário cultural, podemos dizer que
o texto relaciona a posição de José com a posição de um rei como representante
divino. No entanto, a narrativa de Abraão, o grande patriarca dessa família que
dará origem ao povo de Israel, aponta para um estilo de vida nômade e pastoril
como modelo a ser seguido,[15] pois
foi preferido por sua divindade (como a escolha divina por Abel e não por
Caim). Essa escolha tem muito a ver com a visão crítica que grande parte da
tradição bíblica apresenta contra o poder monárquico coercivo, especialmente no
âmbito da exploração agrária,[16] mas
parece ser nessa direção que caminham os sonhos de José como cumprimento das
promessas divinas.[17]
Não é à toa, portanto, que os irmãos
de José tenham ficado indignados com tais sonhos. De fato, a resposta deles,
que aparece somente no primeiro sonho, apresenta confirmações importantes para
tudo o que foi apresentado aqui. Para eles, o primeiro sonho significa que José
irá “reinar” (heb. mālak) sobre eles e os “dominar” (heb. māshal).
O texto hebraico é enfático aqui, pois utiliza, nos dois casos, o infinitivo
absoluto antes do verbo no imperfeito (heb. hămālōk timlōk; māshôl
timshōl).[18]
Por isso a tradução da Almeida 21: “Irás de fato reinar sobre nós? Irás mesmo
nos dominar?”. Não se trata de uma pergunta a fim de obter uma resposta, mas de
uma reprovação contundente.[19] Tal
reprovação poderia até ser pelo fato de José ser o mais novo dos irmãos,
apontando para uma inversão dos benefícios da progenitura, como aconteceu com
Esaú e Jacó (cf. Gn 27). Contudo, os verbos “reinar” e “dominar” apontam para
outra direção. Ainda que o verbo “reinar” possa ter um significado mais neutro,
o verbo “dominar” tem conotações negativas. Ibn Ezra, o comentarista judeu da
Idade Média, diz que māshal é a usurpação do poder, típica dos tiranos.[20] É claro
que se trata de uma referência bem distante, mas em Gênesis 3.16, no contexto
das “maldições” e de rupturas de relacionamentos, māshal é usado para
falar da relação desigual entre Adão e Eva (Gn 3.16). Portanto, estamos lidando
com um tipo de poder coercivo. Assim, fica claro, também, o significado de
“[se] inclinar” (heb. ḥāwâ).[21] A
resposta indignada de Jacó, diante do segundo sonho, enfatiza o gesto de
“inclinar-se” (Gn 37.10). Por trás da indignação de Jacó está a memória de ter
que “se inclinar” diante de seu irmão, Esaú (Gn 33.3). Ainda que no sonho de
José o gesto não seja o inclinar-se “até a terra” (heb. ’āretsâ),
é assim que é descrito o gesto de Jacó diante de Esaú (Gn 33.3; heb. lipnêhem
wayyishtaḥû ’ārtsâ). Por mais que naquela ocasião o gesto não
indique nenhum tipo de relação de reinado, subjugação e coerção, aqui, diante
de todos os elementos apresentados, certamente é assim que devemos entender o
significado de “inclinar-se”.[22]
Sabemos, então, que a experiência de Jacó contribuiu para ter
entendido o segundo sonho de José de forma negativa, mas e seus irmãos, há
alguma experiência da parte deles que os tenha levado a interpretar o primeiro
sonho da forma que fizeram? O narrador de Gênesis nos deu uma dica importante
logo no início do capítulo. Em 37.2, o narrador diz que José, aos dezessete
anos, “era aquele que pastoreava” (heb. hāyâ rō‘eh). A sequência da
sentença diz, em hebraico, ’et ’eḥāyw. Isso pode significar, “com os
seus irmãos” ou “aos seus irmãos”.[23] A
decisão, a meu ver, depende do que vem em seguida. O narrador diz que José
“levava a seu pai más notícias a respeito deles [seus irmãos]”. É muito
possível que, na verdade, José fosse um tipo de “supervisor” de seus irmãos,
daí a necessidade do narrador de enfatizar sua juventude (“dezessete anos”).
Quando o narrador usa o termo “pastorear” para caracterizar a relação de José
com seus irmãos,[24]
não há dúvida de que ele o faz consciente do fato de que o termo “pastorear”,
usado para relações humanas, carrega o sentido de “reinar” ou “governar” no
antigo Oriente Próximo.[25] Dessa
forma, José já é descrito como um tipo de “rei de seus irmãos” pelo narrador.
Mas a questão principal aqui é que tipo de “rei/ pastor” era José. Diante das
imagens usadas em seus sonhos, assim como da resposta de seus irmãos, podemos
dizer que José era/ seria um tipo de “rei/ pastor” como todos os outros reis
que utilizavam seu poder de forma coerciva e opressora. Os próprios irmãos de
José, uma vez no Egito, descrevem o “governador da terra” (cf. Gn 42.6; heb. hāshshalliṭ
‘al hā’ārets) como “senhor da terra” (cf. Gn 42.30; heb. ’ădōnê hā’ārets),
que usa seu poder para “[nos] acusar” (heb. gālal), “[nos] dominar”
(heb. nāṭal), “[nos] fazer escravos” (heb. lāqaḥ), “tomar [os
nossos jumentos]” (heb. lāqaḥ).[26] Esse trecho
é muito importante por três motivos: (1) descreve bem o papel dos “senhores da
terra”, ou seja, os reis dentro do contexto da monarquia urbana de exploração;
(2) descreve o motivo da indignação dos irmãos de José quando seus sonhos de
“senhorio” apelam para imagens desse tipo de reinado; (3) descreve bem o que os
irmãos de José fizeram com ele, e não o contrário (em Gn 37.24, o verbo lāqaḥ
é usado para falar da ação dos irmãos de José contra ele, o que levou á
escravidão de José). Como no caso de Agar, Sara e Abraão, não há inocentes na
história. Aqui, porém, fica mais claro o fato de que há uma disputa de poder em
que o irmão mais novo age como um “rei/ pastor” opressor de seus irmãos,
ansiando desempenhar esse papel num ambiente cósmico de dominação, e os irmãos,
indignados com tamanha presunção, fazem com José exatamente aquilo que temiam
aconteceria com eles pelo poder do “senhor da terra” do Egito.
Apesar de não ter espaço suficiente
para trabalhar a questão com profundidade, vale falarmos um pouco sobre essa
trajetória da família eleita, especialmente a partir de uma mudança de
paradigma com Isaque. Fica claro que o chamado divino à família de Abraão é a
vida nômade e pastoril. Uma forma de estabelecer isso é que a terra prometida a
Abraão é chamada de terra de suas “peregrinações” (Gn 17.8). Isaque, no
entanto, tem preferências diferentes. Seu ideal não é a vida pastoril, sendo mais
atraído pelo “campo” (heb. śādeh).
Diferente de Abraão, Isaque “semeia [a] terra” (Gn 26.12). Em Gênesis 27.3,
Isaque fala para Esaú preparar uma comida “especial” de algo que apanhará no
“campo”. Não se trata, porém, de uma caça selvagem, pois já vimos que “campo”
está ligado a terras cultivadas. Estamos lidando, aqui, com um apetite por algo
ligado ao “campo”. Para esclarecer como esse apetite não se conforma ao estilo
de vida pastoril, o v. 9, quando Rebeca planeja enganar Isaque, ela pede que
Jacó traga dois bons cabritos. É claro que pastores também comiam a carne de
seus animais, mas não era a refeição comum, já que era o sacrifício daquilo que
lhes rendia os meios de sobrevivência. É interessante, também, que Isaque faz
uma escolha bem clara em Gênesis 27.27. Jacó, a fim de enganar seu pai, leva
sobre as mãos a pele de cabritos, mas não é o cheiro dos cabritos que Isaque dá
atenção, como seria o esperado de um pastor, e sim o cheiro do “campo” que
emana da roupa de Esaú. Trata-se de uma escolha deliberada por um estilo de
vida em conflito com outro.[27]
A questão é que esse estilo de vida preferido por Isaque, simbolizado nessa
comida “especial”, é do tipo “luxuoso”, típico dos monarcas em seus palácios e
ter tal “apetite” é um perigo (cf. Pv 23.3).[28]
Aqui entra um aspecto
mais profundo nessa história. O texto bíblico deixa claro que não se trata de
um mero apetite inocente, mas de um estilo de vida característico da vida
urbana/ agrícola, típica dos grandes reinos. Isso fica claro quando Isaque
“abençoa” Jacó, pensando ser Esaú. Mais uma vez, ele destaca sua preferência
pela agricultura e não pelo pastoralismo ao desejar que seu filho receba
“lugares férteis da terra”,[29]
“fartura de trigo e de vinho novo” (Gn 27.28). Mais importante, contudo, é que
logo a seguir, Isaque diz: “sirvam-te povos, e nações se curvem diante de ti;
sê senhor de teus irmãos, e os filhos da tua mãe se curvem diante de ti” (Gn
27.29). Como é possível notar, já superficialmente, esse desejo reflete muito
do que aparece nos sonhos de José. A segunda parte, que fala sobre as dinâmicas
familiares, deixa clara a relação. O verbo “curvar/ [se] inclinar” (heb. ḥāwâ) é o mesmo, sendo
que aqui, com o paralelo “sê senhor (heb. gebîr)
de teus irmãos”, deixa claro que se trata de uma relação coerciva.[30] O que
mais chama atenção, porém, é que essa realidade doméstica das relações
fraternais é o fundamento para a primeira parte da “bênção”, a submissão e
serviço (heb. ‘ābad) de “povos” (heb. ‘ammîm)
e “nações” (heb. le’ummîm),
ou seja, o âmbito não é doméstico, mas cósmico, a partir da realidade política (lê-se
monárquica e urbana), exatamente como no caso dos sonhos de José. Assim, a
narrativa mostra que a história de José é o reflexo dessa “bênção” de Isaque
sobre Jacó, além de ser cumprimento da promessa de deus a Abraão e Sara sobre
os “reis” que procederão deles. Contudo, esperava-se que esses reis teriam mais
a ver com o ideal de vida e fé de Abraão, que foi nômade/ peregrino e pastor, e
não com um ideal das monarquias urbanas. Há, portanto, na narrativa, um desvio
progressivo desse ideal abraâmico. Isaque “planta” e adquire um apetite pela
“gordura da terra”; Jacó “habita” (heb. yāshab)
na terra das peregrinações de Abraão (Gn 37.1); José, então, tem sonhos de
“reinar”, como um típico déspota dos centros urbanos, que exploram as terras
cultivadas.
Para concluir este post, quero deixar uma coisa clara: não
se trata de uma escolha simples entre nomadismo e sedentarismo ou pastoralismo
e agricultura, como se fosse uma escolha a respeito de qual “profissão” a
família da aliança divina teria. Também não é a proibição do sedentarismo e da
agricultura e nem a impossibilidade de desfrutar dos benefícios do sedentarismo
e da agricultura. A escolha é entre dois modos de se viver no mundo, dois modos
de organizar a sociedade e dois modos de se relacionar com o poder. O primeiro
é típico de indivíduos e comunidades distantes dos centros de poder urbano como
símbolos da monarquia exploradora, enquanto o segundo é típico de indivíduos e
comunidades que compõem os centros de poder urbano. Isso é óbvio diante do fato
de o chamado de Abraão (Gn 11) vir como uma resposta/ crítica divina ao tipo de
estruturação da sociedade humana simbolizado pela Torre de Babel (Gn 11).[31] O
desenrolar das narrativas patriarcais carregam essa tensão: será que essa
família, por fim, se tornará um poder coercivo como o das outras nações? A
única diferença é que eles foram escolhidos pela divindade? Não é isso que
todas as outras nações também reivindicam?[32] Será
que o Deus que chamou Abraão tem em mente preservar o cosmo por meio de um
descendente seu que exercerá o mesmo tipo de poder coercivo que destruiu o
cosmo tantas vezes? A resposta virá no próximo post, a partir da experiência de exílio e escravidão de José e da
inserção da prioridade de Judá na narrativa.
[1]
O termo “ciclo” é proveniente do hebraico tôledōt (port.
gerações). O termo marca divisões literárias e narrativas importantes em
Gênesis. Ver Robert Alter e
Frank Kermode (orgs.), Guia Literário da Bíblia (São Paulo: Unesp,
1997), pp. 55-56; Marvin A. Sweeney, Tanak: A Theological and Critical
Introduction to the Jewish Bible (Minneapolis: Fortress, 2012), pp. 45-49.
[2]
Ainda assim, o texto já estabelece que se trata de uma “decisão firme” da parte
de Deus, já que o sonho se repete, como no caso do faraó em Gênesis 41 (cf.
41.32). Ver John H. Sailhamer,
“Genesis”, in The Expositor’s Bible Commentary, vol. 2 (Grand Rapids:
Zondervan, 1990), p. 226. Isso não indica imanência, já que o tempo
passado entre os sonhos e a conclusão da história é de vinte e dois anos. Cf. David A. Bosworth, The Story
Within a Story in Biblical Hebrew Narrative (Washington: The Catholic
Biblical Association of America, 2008), p. 62.
[3]
Leon Kass, The Beginning of Wisdom: Reading Genesis (Nova Iorque: Free
Press, 2003), p. 518, diz que se trata de um “sonho de domínio cósmico”. A
mesma interpretação é sugerida por R. R. Reno, Genesis (Grand Rapids:
Brazos Press, 2010), p. 263.
[4]
Essa é uma forma diferente de relação entre a dinâmica familiar de Agar, Sara e
Agar com o cosmo, que se dá no contexto da aliança. Ver o post
anterior.
[5] Cf. Alan B. Lloyd (ed.), Gods,
Priests and Men: Studies in the Religion of Pharaonic Egypt by Aylward M.
Blackman (London: Routledge, 2011), p. 188. Até poderíamos desenvolver
melhor essa comparação, pensando que a estrela, representando a família de
Abraão, exercerá poder maior do que o sol, representando o poder político do
Egito, mas isso iria além dos propósitos desse post.
[6] Cf. Timothy R. Ashley, The Book
of Numbers (Grand Rapids: Eerdmans, 1993), p. 500. Essa identificação de
corpos celestes com reis e poderosos é reflexo da associação dos corposo
celestes com divindades. Grande parte do panteão do antigo Oriente Próximo é
noemado a partir dos corpos celestes. Ver Mark S. Smith, O Memorial de Deus: História, Memória e a
Experiência do Divino no Antigo Israel (São Paulo: Paulus, 2006), p. 150-2.
[7]
Texto muito importante para nosso estudo, portanto será abordado mais a frente.
[8]
Ainda que esteja inserido num período posterior, o texto é importante, pois diz
respeito ao faraó.
[9]
Meu propósito foi interpretar o segundo sonho de José a partir da imagem dos
corpos celestes. Ron Pirson,
porém, em “The Sun, the Moon and Eleven Stars: An Interpretation of Joseph’s
Second Dream”, in André Wénin (org.), Studies in the Book of Genesis:
Literature, Redaction and History (Leuven: Leuven University Press, 2001),
pp. 561-658, sugere que o segundo sonho aponta para o tempo em que o primeiro
sonho seria realizado. Para ele, os corpos celestes falam sobre suas
funções como marcadores de tempos e seus números apontam para anos. A soma das
onze estrelas com o sol e a lua, num total de treze, revela os treze anos que
se passaram até José se tornar governante do Egito (cf. Gn 37.2 e Gn 41.46 ).
Já o número de estrelas (onze), multiplicado pelos dois principais marcadores
de tempo (o sol e a lua), totaliza vinte e dois, o que revela os vinte e dois
anos entre os sonhos de José e o momento em que os irmãos se curvam diante dele
no Egito (cf. 45.6; já havia se passado 7 anos de fartura + 2 anos de fome = 9
anos). Essa interpretação acrescenta um elemento importante nos sonhos de José
e deve ser tomada em conjunto, e não em antagonismo, ao que apresentei aqui.
[10] Contra Gordon Wenham, Genesis 16–50 (Dallas: Word,
Incorporated, 1998), p. 352.
[11]
Esta palavra está diretamente ligada à “terra cultivada”. Cf. Jeffrey A. Fager, Land Tenure and the Biblical Jubilee: Uncovering Hebrew
Ethics through the Sociology of Knowledge (Sheffield: JSOT Press, 1993), p. 89.
[12] Ver Ithamar Gruenwald, Rituals
and Ritual Theory in Ancient Israel (Atlanta: Society of Biblical Literature,
2003), p. 44.
[13]
Ithamar Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel, p. 74,
diz que a Escritura apresenta os egípcios como um povo da cidade (cf. Gn 47.21;
Êx 1.11).
[14] Cf. Victor Hamilton, The Book of
Genesis 18-50 (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), p. 410.
[15] Ithamar Gruenwald, Rituals
and Ritual Theory in Ancient Israel, p. 55.
[16]
Ver Ithamar Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel,
especialmente pp. 58-62 e 86-93, para uma explicação dessa preferência pelo
nomadismo a partir do entendimento que a “terra” (heb. ’ădāmâ) é maldita
(cf. Gn 3.17).
[17]
Esses sonhos de elevação ao poder são conhecidos no antigo Oriente Próximo. Ver
exemplos citados em John H. Walton, Genesis (Grand Rapids: Zondervan,
2001), pp. 663-4.
[18]
Cf. Thomas O. Lambdin, Gramática do Hebraico Bíblico (São Paulo: Paulus,
2003), pp. 198-9.
[19] Ver Victor Hamilton, The
Book of Genesis, p. 410.
[20] Citado por Victor Hamilton, The
Book of Genesis, pp. 410-1.
[21]
John Sailhamer, “Genesis”, p. 227, diz que o significado de “inclinar-se” aqui
é o reconhecimento de realeza e reinado. Isso fica claro quando vemos que
Isaque, ao “abençoar” Jacó, pensando que se tratava de Esaú, fala o seguinte:
“sirvam-te povos, e nações se curvem diante de ti” (Gn 27.29). Voltaremos a
esse texto mais adiante.
[22]
Enquanto inclinar-se, no texto bíblico, carregue conotações positivas de
“respeito” e até “adoração”, há também possibilidades negativas, como
“submissão servil”. Ver Bruce K. Waltke (ed. et. al.), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento (São
Paulo: Vida Nova, 1998), pp. 434-6. Para Ron Pirson, em Gênesis, em geral, como
em 18.2, e até no ato em si dos irmãos de José em 42.6 e 43.26, 28, a conotação
é de respeito e temor. The
Lord of the Dreams: A Semantic and Literary Analysis of Genesis 37-50 (Sheffield: Sheffield Academic
Press, 2002), p. 49. No entanto, as imagens dão o contexto para a
interpretação do termo. Portanto, sim, “inclinar-se”, aqui, tem um significado
negativo.
[23]
A questão é se o ’et é sinal de acusativo ou preposição, “com”.
[24]
Acho notável que somente os filhos de Bila (Dã e Naftali) e Zilpa (Gade e
Aser), as duas concubinas com status
inferior ao de Raquel e Leia, sejam mencionados. Há uma questão hierárquica
nítida aqui.
[25]
Dentre alguns textos bíblicos que poderiam ser usados para ilustrar isso, não
há dúvida de que o mais relevante é 2Samuel 5.2. Esse texto tem a construção
exata com ’et como sinal de acusativo e fala da ascensão de Davi como
rei de Israel. Cf. Victor Hamilton, The
Book of Genesis, p. 406. Essa relação com Davi será importante no próximo post, quando considerarei o papel de Judá
na narrativa.
[26]
Como foi possível ver, a construção do hebraico é bem diferente aqui. Uma
tradução literal de Gn 43.18c seria: “foi para rolar contra nós e cair sobre
nós e tomar a nós como escravos e aos nossos jumentos”. Uma tradução melhor
seria: “foi para nos arrastar, subjugar, nos prender como escravos e confiscar
nossos jumentos”.
[27]
Ver Ithamar Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel, p.
78.
[28]
Podemos ver parte desse aspecto negativo de comidas “luxuosas” na história de
Daniel (cf. Dn 1, especialmente v. 8). Walter Brueggemman diz: “Carne aponta
para um estilo de vida rico… toma mais energia, mais trabalho, mais produção,
mais competência e mais tempo para produzir carne para a mesa” (Texts Under Negotiation [Minneapolis: Fortress, 1993], p. 88).
E esse “apetite” é típico de um estilo de vida urbano, bem oposto ao estilo de
vida pastoral. O próprio Brueggemman aponta para isso logo em seguida, na
página 89.
[29]
Literalmente, “gordura da terra” (heb.
ûmishmannê hā’ārets).
[30]
Contra Ron Pirson, The Lord of the Dreams, p. 49, que vê
aqui uma attitude de respeito, e sem nenhum tipo de conotação de relações entre
um rei e seus subordinados. A relação com o estilo de vida agrário/ urbano/
monárquico do apetite de Isaque, assim como com os sonhos de José, deixa claro
que se trata de relações de autoridade e submissão coercivas.
[31]
Daí a importância, também, dos encontros tensos entre os patriarcas e reis,
como o faraó (Gn 12.10-20) e Abimeleque (ver Gn 20; 21.22-34; 26) – que,
provavelmente não é um nome, mas sim um título dos reis filisteus, como faraó
era um título dos reis do Egito.
[32]
É consenso que textos religiosos do antigo Oriente Próximo eram usados para
fundamentar a reivindicação de poder por parte de reis, como no caso do uso que
assírios e babilônios fizeram do conhecido Enuma
Elish. É interessante, contudo, que esse uso pode ter mais a ver com
aspirações políticas pelo poder que se deseja do que reivindicações políticas
pelo poder que já se tem, ver Mark S. Smith, O Memorial de Deus: História, Memória e a Experiência do Divino no
Antigo Israel, p. 149-150. Isso é extremamente relevante para as narrativas
patriarcais, pois fala sobre as origens de um povo à sombra de poderes
políticos como da cidade de Ur, o Egito e a Filístia, ainda sem nenhum tipo de
poder. Além disso, pode ser muito relevante para uma realidade judaíta
pós-exílica, uma comunidade sem poderes políticos à sombra de grandes impérios
que a dominava.
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